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A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas. |
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Conversa
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Pimenta
Experimente esta sensação, sem querer lamber uma colher que estava sobre o prato de arroz temperado, comer o que ainda resta do delicioso arroz. Mas esta colher foi utilizada para pegar um pouco de pimenta do pote de conserva. E eis que você lambe uma colher de pimenta. Resisti à minha vontade de cuspir e logo senti a sensação apimentada em minha boca, queimando, como um beijo. Fechei os olhos e meu corpo inteiro queimava. Delicioso ardor da pimenta.
Mas não é o mesmo ardor de algo da pimenta que voou em meus olhos, num outro dia, enquanto eu partia aquela pimenta laranja – forte – para pegar as sementes e plantá-las. Meus olhos queimavam como se fossem... queimavam. Fui jogar água com as mãos, elas estavam sujas de pimenta, ardeu mais, queimou mais, desespero, transbordando de dor. Alguns segundos de desespero e alguns minutos de dor.
A mesma pimenta.
Pimentina
Meu nome é Tina. Estou aqui falando com vocês não porque eu goste de falar com os outros – não, não gosto. Não gosto de pessoas, tenho muita preguiça de vozes e de cores e de tudo que demonstre vida. Aliás, discordo de mim própria. “tudo que demonstre vidaâ€. Não gostei desta afirmação. Demonstrar vida.
Mas já me explico, já vos explicito o porquê da minha escrita, que você lê em busca de cores. Olha, não gosto de cores. Gosto de preto e me disseram que preto não é cor, não concordo com essa tal de FÃsica, mas, bem, não gosto. Não gosto de cores, nem de pessoas e tem uma coisa que não gosto mais que tudo neste mundo, do Sol.
Talvez o fato de eu não gostar do Sol tenha algo a ver com meu encantamento pelo preto. Logo vejo que utilizei a palavra encantamento, que considero muito piegas. Coisa de menina romântica que costuma gostar de rosa e de flores e de cheiros e de cores. Não gosto de nada disso. Gosto de preto e não gosto de Sol. Quando estou no Sol de preto sinto um calor imenso, desses que dá vontade de correr e esse calor me aflige, logo quero ir embora, sair de onde esteja o Sol, fugir. Mas ele sempre está fora.
Por isso gosto da Lua. Nesses dias a Lua está muito bonita, Lua cheia, vejo agora que também gosto de branco e bege, são essas as cores da Lua que percebi hoje. Mas também considero piegas o amor à Lua. Quê fazer? Meu discurso entra em contradição a cada momento. Pararei de escrever simplesmente? Li acima que a autora resolveu falar de pimenta. Não compreendo porque ela fez isso. Pimenta e depois falar de mim, Tina, não vejo nada que nos aproxime.
Mas voltando a falar do Sol, uma vez tive a péssima idéia de contar sobre este meu gosto, ou melhor, desgosto por este astro que ilumina e traz aos olhos as tantas cores do mundo a uma colega de... percurso. Ela arregalou os olhos, “Como é possÃvel que você não goste de Sol?†e muitos blás blás. Eu é que não entendo como alguém consegue gostar disso. Sol. Coisa quente, quando fico muito tempo sob o Sol minha pele coça. O médico diz que é alergia, eu discordo, é desgosto, esse Sol me irrita e coço como se quisesse tirá-lo de meu corpo, é impossÃvel, diria a Dona FÃsica. Sim, mas é o que sinto.
Eu poderia parar de falar agora e deixar o gosto aà na boca, esse gosto estranho ou nulo, gosto de nada. Talvez seja uma opção viável. Mas, ainda que eu não goste de pessoas, gosto de falar. E quando começo não paro. Mas o limite ideal é de 2000 caracteres e já passei disso.
Como não gosto de pessoas gosto de pensar tudo que me parece distante de nós todos humanos. Olho a Lua, fujo do Sol e penso o que eles podem representar para mim. O Sol é marca do infinitamente ruim e a Lua do infinitamente frio. Outro dia um colega me contou que a Lua com certeza cairá na Terra. Será, então, o fim da humanidade. Disse ele que isso ocorrerá porque a Lua é muito grande por ser um satélite da Terra.
Essas questões me intrigam. Não gosto de Sol, considero-o representação do infinitamente quente. Talvez seja por isso que ela me colocou aqui? A pimenta pode ser algo próximo do infinitamente quente? São calores distintos, reconheço. Mas são calores. Além disso o ardor nos olhos da pimenta é incômodo quase como a incapacidade de ficar de olhos abertos no Sol que nós, astigmatas, temos. Quase. Porque o da pimenta é muito pior. Infinitamente desesperador por volta de trinta a quarenta minutos.
Mas pensar no infinito me leva sempre a mil lugares possÃveis. E vejo que eu acabei indo em direção contrária à quela na qual eu me encontrava. Saà da secura do não dizer e cá estou escrevendo mais do que deveria.
O fato é que fiquei irritada com a colega porque ela me julgou por apenas uma caracterÃstica minha que é a de não gostar do Sol. Tudo bem que eu também não gosto de muitas outras coisas, como pessoas, mas isso é irrelevante em tal contexto.
Termino por aqui. Caà em contradição. Divago e fujo do caminho que eu me traçava, o do não dizer. Ao divagar fujo da fuga e me olho no espelho das letras.
A mesma pimenta
-- Camilla Felicori gosta muito de cores. camilla.felicori@gmail.com
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