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“6 de outubro de 1946, domingo. Estávamos assim frente aos famosos kalapalo, responsáveis pelo desaparecimento do explorador inglês coronel Percy Fawcet e seus dois acompanhantes. A primeira coisa que procuramos saber foram seus nomes. O mais velho, ‘capitão’ conforme disse, chamava-se Iuaikuma. Não demorou muito e estavam aparentemente tranquilos entre nós. Depois da pequena conversação, na qual nem eles nem nós saímos entendendo o que foi dito, continuamos viagem até as cinco da tarde, quando chegamos ao acampamento”.
Trecho do Diário da Expedição dos irmãos Villas Bôas. Livro “A Marcha para o Oeste”.
Nos anos 40, o governo brasileiro deu início a um projeto denominado Marcha para o Oeste, com o objetivo de ocupar o sertão do país. Migrantes de todas as partes integraram o movimento em busca de emprego na missão de desbravar o Brasil Central. Entre eles, compondo a expedição Roncador-Xingu, estavam três irmãos paulistanos de classe média e com bons empregos. O que guiava Orlando, Claudio e Leonardo Villas Bôas era unicamente o espírito de aventura.
Pelo menos é isso que tenta mostrar “Xingu”, filme de Cao Hamburger que acompanha a saga dos irmãos que deu origem ao Parque Nacional do Xingu, uma das maiores reservas indígenas do mundo. Adotando desde o início o tom épico, a produção abusa de longos planos abertos para reforçar a pequenez do “homem branco” frente à natureza, mas tratando de colocar os índios em enquadramentos mais fechados, mostrando-os como os verdadeiros donos daquele lugar.
Tomando muitas liberdades para contar uma fascinante história real, o roteiro consegue a proeza de não se tornar episódico, apesar de tratar de um intervalo temporal de quase vinte anos. Desta forma, somos apresentados aos irmãos e suas diferentes personalidades logo no início para então acompanharmos de forma tensa e também emocionante a descoberta de um verdadeiro novo mundo.
“Xingu” mistura humor, ação e momentos de pura poesia, como o primeiro encontro dos Villas Bôas com uma tribo ou sua chegada à aldeia. O elenco, que mistura atores profissionais com índios, está fabuloso, assim como a trilha sonora confere grandiosidade, mas também sensibilidade, quando é necessário. Felipe Camargo como Orlando e Caio Blat como Leonardo entregam atuações sinceras e apaixonantes, fazendo-nos acreditar piamente nos valores daqueles homens. Mas é João Miguel quem brilha com mais força, fazendo de seu Claudio uma mistura de idealismo, ingenuidade e obsessão que o torna o personagem mais complexo do filme, o tempo inteiro caminhando sobre uma fina linha que distingue o trágico do arrebatamento.
Se por um lado consegue dar conta das relações entre esses personagens em meio à toda a sua estruturação épica, a produção falha exatamente ao estabelecer um arco dramático mais estruturado para cada um dos irmãos. Nossa simpatia e crença em suas atitudes se dá muito mais pelo extraordinário trabalho dos atores que pelo roteiro, que transforma Claudio, Leonardo e Orlando em simples reagentes a tudo que acontece à sua volta.
É como se eles não tivessem uma personalidade própria (que inclusive, pouco se transforma ao longo da narrativa, apesar das experiências marcantes que vivem), apenas respondendo àquilo que ocorre. Sua atitude em abandonar a vida urbana para se embrenhar no sertão também é justificada apenas pela tal “sede de aventura”, nunca sendo problematizada de forma mais clara.
Além disso, a direção de Hamburger por vezes peca no ritmo, resultado da tentativa de equilibrar a grandiosidade da jornada com o intimismo dos personagens em uma trama que cobre um longo período de tempo. Mas são problemas que não afetam a experiência de se fazer uma jornada única ao lado dos irmãos que ajudaram a redescobrir o Brasil. Não se engane, “Xingu” é um dos filmes mais poderosos que o cinema brasileiro já produziu.