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Em certo momento de “J. Edgar” alguém interpela o personagem título, o famoso diretor do F.B.I., dizendo: “Trata-se do legado de um homem ou da reputação de uma instituição?” O que está sendo discutido é o teor das memórias que John Edgar Hoover ditava ao seu biógrafo, mas podia muito bem ser a temática do filme. E é nesse aspecto que “J. Edgar” mais sofre.
Fomos adestrados por décadas de cinema e TV a transferir parte da fascinação nada saudável que sentimos por assassinos, ladrões e mafiosos notórios para os seus adversários do ladro de dentro da lei. Dramas procedimentais e histórias de investigação exercem uma forte atração sobre nós, e quando assistimos a um filme sobre a vida de um homem como J. Edgar Hoover, tão indissociável do seu trabalho na maior agência de manutenção da lei do mundo, é difícil se interessar mais pelos dramas pessoais de um velho conturbado do que pelos conflitos glamourosos que povoaram a história do F.B.I..
Mas se o filme dirigido por Clint Eastwood consegue, mesmo que em parte, fazer com que nos importemos com seu protagonista, é graças à atuação impecável de Leonardo DiCaprio. Quem adivinharia, na época em que o ator era apenas um rostinho bonito arrancando suspiros da platéia feminina de “Titanic”, que ele viria a ser capaz de carregar um filme nas costas apenas com sua capacidade interpretativa? Até o trabalho de maquiagem, medíocre no resto do elenco, funciona perfeitamente em DiCaprio, criando uma mescla entre as feições do ator e as da figura histórica que ele interpreta. E se, no começo do filme, é difícil deixar de reconhecer a voz e o rosto jovens do ator sob a pele do personagem, no decorrer da projeção o trabalho de DiCaprio é mais do que suficiente para nos fazer esquecer que ele não é realmente J. Edgar.
A direção de Eastwood prima, como sempre, pela delicadeza, mas é prejudicada pela estrutura narrativa confusa bolada pelo roteirista Dustin Lance Black (de “Milk”). Apesar de permitir cortes que estabelecem belos paralelos entre os dois períodos da vida de Hoover que são alternadamente mostrados, a estrutura não-linear peca por falta de coerência, já que mistura os acontecimentos que são narrados – e “maquiados” – pelo protagonista a seus biógrafos com uma série de dramas mais íntimos, que Hoover certamente jamais teria tornado públicos. Temos aí, por exemplo, sua doentia dependência da mãe tirânica (interpretada por Judi Dench), seu conflito interno com o próprio homossexualismo, sua paranóia e sua necessidade quase infantil de adoração do povo.
Aliás, “J. Edgar” não é só um filme sobre Hoover e sobre a transformação do F.B.I. em uma força séria da lei. É também um alerta e, como tal, mostra-se uma soberba peça retórica. Pois se o filme apresenta as realizações de Hoover (que revolucionou o campo da investigação forense), ele também mostra o falecido diretor como alguém que não hesita em rotular como “declínio moral” qualquer desvio dos valores deturpados herdados da mãe tirânica, e que considera como “radicais e anarquistas” ou “inimigos da nação” qualquer pessoa que ameace o seu poder. A sequência em que Hoover dribla o processo jurídico devido para deportar estrangeiros pelo mero crime de serem suspeitos de atividades que hoje seriam descritas como “terroristas” ressoa particularmente bem com a situação norte-americana da última década.
Em suma, “J. Edgar” é um filme falho, mas certamente não tão falho quanto seu protagonista, um homem covarde e cruel, mas que deixou dois grandes legados. Um deles foi a importante contribuição para a tecnologia policial. O outro, a soma de todos os seus crimes convertida em um alerta: o de que devemos vigiar os homens poderosos com o mesmo empenho que eles nos vigiam.