Na prateleira: Blade Runner (1982)


Nossa avaliação

Uma cidade futurística, luminosa, com bolas de fogo explodindo no céu escuro. Um olho. Um ventilador de teto cortando a fumaça contra um fundo azul. Das imagens que abrem o filme até o seu final, “Blade Runner – O Caçador de Andóides” é uma obra fascinante. Dirigido por Ridley Scott a partir do roteiro de Hampton Fancher e David Peoples que adapta o livro “Do Androids Dream of Eletric Sheep?” de Philip K. Dick, a produção problemática teve as mais variadas versões em vídeo. Aqui será tratada a mais recente, montada em 2007 para comemorar os 25 anos de lançamento do filme. Ou seja, nada de narrações idiotas e nem Deckard dirigindo feliz ao lado de Rachael rumo ao pôr-do-sol.

Na Los Angeles de 2019, a história acompanha Rick Deckard (Harrison Ford), um relutante caçador de andróides.  Após um motim, os replicantes (andróides modelo Nexus 6, fabricados pela Tyrell Corporation e fisicamente idênticos aos humanos ) são proibidos na Terra e condenados à destruição, cabendo ao protagonista buscar os últimos quatro remanescentes: Roy (Rutger Hauer), Leon (Brion James), Zhora (Joanna Cassidy) e Pris (Daryl Hannah).

Ambientado em uma cidade moderna, mas mergulhada em lixo, fumaça e chuva ácida, “Blade Runner” usa sua premissa para construir uma distopia do futuro ao mesmo tempo em que filosofa sobre o sentido da vida. Scott vinha do sucesso de “Alien” e se preparava para fazer “Duna” (que acabou dirigido por David Lynch) quando seu irmão mais velho morreu repentinamente. Deprimido, sentindo-se deslocado e questionando os mistérios da vida, o diretor encontrou na história dos replicantes a forma perfeita para exorcizar seus sentimentos.

O futuro tecnorgânico de Bilal

O fantástico design de produção de Syd Mead -inspirado nos quadrinhos de Moebius e de Enki Bilal – cria uma atmosfera claustrofóbica, em que os personagens estão sempre cercados: seja pelos prédios, muros, paredes ou pessoas. No mundo de neon habitam seres que vivem nas sombras: apesar do excesso de luz, nunca nada é visto com clareza, os personagens estão sempre escondidos, mergulhados na escuridão. “Blade Runner” é um filme noir futurista.

O futuro vertical de Moebius

O futuro noturno de Mead

As sombras e o azul que dominam a fotografia causam uma sensação de frieza e mistério que acaba por refletir o estado emocional dos personagens. Nunca compreendemos totalmente as intenções e motivações deles (humanos ou replicantes), estão todos perdidos, oprimidos pela sua própria realidade. As pessoas estão sempre buscando o alto (e é interessante que as colônias interplanetárias pareçam uma saída daquela opressão), indo para cima (seja com seus veículos voadores, escadas ou elevadores), mas acabam sempre presas ao chão, à sua molhada e suja realidade.  Deckard, por sua vez, é tão insípido quanto os andróides que caça, parecendo sempre desconfortável em todos os lugares em que se encontra. Nem mesmo sua casa é aconchegante, ele é um eremita que – não por acaso – vive em um apartamento que foi concebido para parecer uma caverna.

Scott fez um filme frio, de relações superficiais. Um mundo superpovoado, culturalmente híbrido, mas sem calor humano. Emocionalmente, não parece haver diferenças entre humano e replicante: a única coisa que os distingue é uma transformação física na íris e pupila. O olho, o mesmo que abre o filme tendo os arranha-céus de Los Angeles refletidos na íris, é mais do que nunca a janela da alma. É por ele que a vida humana é percebida. Mas no futuro de “Blade Runner” os olhos são tão sem vida que é preciso um teste para encontrar – ou não – a alma ali dentro.

Harrison Ford diz pra quem quiser ouvir que não gostou da experiência de fazer o filme. Segundo ele, Ridley Scott dava mais atenção ao cenário e à luz do que aos atores, e sendo intencional ou não, o descontentamento de Ford caiu como uma luva para sua interpretação de um perdido e entediado Deckard. Da mesma forma, a inexperiência de Sean Young ajudou na sua composição inexpressiva de Rachael, a replicante por quem o caçador se apaixona. O casal não possui química nenhuma, mas mais uma vez, tudo acaba funcionando dentro da ambientação construída para o filme. Parecem duas máquinas se relacionando, sem paixão, sem romance, sem vida.  A “prisão” em que eles se encontram aparece na cena em que dão seu primeiro beijo. As sombras da cortina formam listras em seus rostos, como grades que reforçam o sentido de impossibilidade, já indicando as conseqüências que aquele relacionamento poderá trazer (quando se beijam pela segunda vez, no final do filme, não há mais sombras, estão livres, em paz consigo mesmos).

Após o beijo, Rachael passa a ser perseguida como uma replicante. O ato de beijar tem significados importantes em “Blade Runner”, estando associado à destruição, o beijo da morte (o beijo com o qual Judas trai Jesus Cristo). É com um beijo que Roy mata Tyrell, o criador dos replicantes. E é com um beijo que ele se despede de Pris, morta por Deckard. Ironicamente o mais humano dos personagens em cena, Roy assemelha-se a uma criança, curioso, interessado em aprender e tentando sobreviver. Os replicantes possuem apenas 4 anos de vida, e ele parte em busca do Dr. Eldon Tyrell, seu criador, para tentar viver mais.

E Roy sobe rumo aos céus (e onde mais o Criador poderia se encontrar?), para o alto de um edifício. Lá, confronta seu “pai”. A casa de Tyrell é aconchegante, usa cores quentes como o amarelo e o laranja, em um ambiente que lembra o útero materno. Criador e criatura se confrontam em meio às chamas de velas: em um mundo de luzes artificiais, o fogo aqui possui um simbolismo próprio. É a fonte do conhecimento (o mito grego em que Prometeu leva o fogo aos homens), é a oposição com a água que domina a caótica Los Angeles e é também a representação do inferno. Afinal, um homem que brinca de Deus seria um santo ou um demônio?

O filho destrói o pai, a criatura mata o criador e parte para cumprir seu destino, a morte certa e impossível de se escapar. Em mais um simbolismo cristão, o filho do criador atravessa um prego em sua mão (assim como o filho de Deus na cruz) e parte segurando uma pomba (representação do Espírito Santo e também símbolo da paz), apenas para sentir alguma coisa viva em seus braços. Por saber que vai morrer, Roy compreende a vida melhor do que os humanos. Mas não sabemos todos que vamos morrer? Em seu final, “Blade Runner” se estabelece como uma obra sobre a finitude da vida, efeitos especiais e ficção científica utilizados para responder à mais antiga das questões: qual o sentido de tudo isso?

Não há uma resposta, apenas a certeza de que todos vamos morrer (“Afinal, quem não morre?”, pergunta Gaff, personagem de Edward James Olmos, para Deckard) e que são nossas ações, imortalizadas nas nossas memórias, que nos fazem ser quem somos. O monólogo final de Roy valoriza a memória como vida, nossas lembranças como a prova de que passamos por este mundo. Pela morte dele, Deckard se liberta (o filho do criador morrendo para salvar o homem), compreende a vida e parte decidido a viver com Rachael, mesmo sabendo que resta a ela pouco tempo de vida. E então vem a grande revelação do filme, de forma sutil, nada exagerada, utilizando apenas a imagem do unicórnio feito por Gaff.

O unicórnio (símbolo da imaginação humana, criatura que não existe na realidade e criada pelo nosso imaginário) ocupa os sonhos de Deckard e o fato de outra pessoa saber sobre o que ele pensa é a prova de que o caçador de replicantes é, na verdade, um replicante com memórias implantadas. Agora Deckard sabe que, assim como Rachael, ele também possui pouco tempo de vida, e vai viver com ela o pouco tempo que resta.

“Blade Runner” envelheceu bem. As cenas de luta possuem problemas de ritmo, mas os efeitos especiais, as lindas imagens e o jogo de gato e rato no final (que inverte a situação, colocando o caçador como caça) continuam perfeitos. A trilha sonora de Vangelis é um caso a parte, e mereceria uma análise só dela. Por aqui basta dizer que poucas vezes som e imagem se casaram de forma tão perfeita, conceitual e plasticamente.

O filme foi um fracasso por diferentes motivos. O trailer o vendeu como um novo “Star Wars”, o que provocou obviamente uma decepção nas pessoas que foram ao cinema esperando uma aventura descompromissada e encontraram um filme de arte de ficção científica. Em 1982, o público parecia estar muito mais interessado em fantasias otimistas do que distopias sombrias. “E.T. – O Extraterrestre” foi lançado no mesmo ano, vindo a se tornar a maior bilheteria da história. O sucesso de “E.T.” ajuda a compreender a fraca bilheteria de “Blade Runner”: a opção do público pela emoção, exatamente o que falta ao frio filme de Scott.

Não é uma história feita para chorar, assustar, suspirar. É para se deslumbrar e pensar. “Blade Runner” é como um quadro, com imagens belíssimas que dizem mais do que as falas de muitos personagens. É uma experiência cinematográfica que obriga a reflexão e nos faz questionar nossa própria evolução. Afinal os replicantes – chamados Nexus – não seriam os “próximos nós” (next us)? Não estaríamos caminhando para nos tornar seres que agem, mas não sentem?

“Blade Runner” nos coloca várias questões.  A resposta fica para cada um.


5 respostas para “Na prateleira: Blade Runner (1982)”

  1. Não gostei de Blade Runner quando vi – estava no mesmo clima do pessoal de 82, querendo um filme sem compromisso. Faz tempo, mas me lembro do medo que ele me deu!
    Ótima crítica, como sempre 🙂

  2. Fantástica a análise do Blade Runner, faz um bom tempo que assisti o filme mas percebi que tem várias coisas que tinha deixado passar em branco.

    Particularmente uma coisa que gostei muito foi este trecho

    “Não há uma resposta, apenas a certeza de que todos vamos morrer (“Afinal, quem não morre?”, pergunta Gaff, personagem de Edward James Olmos, para Deckard) e que são nossas ações, imortalizadas nas nossas memórias, que nos fazem ser quem somos. ”

    Tenho pensado muito nisso ultimamente. Até uso como exemplo os momentos que as vezes estamos meio acordados (mas não totalmente despertos), interagimos com alguém e voltamos a dormir e algumas horas depois ao acordar realmente não fazemos a menor idéia ou lembrança deste momento (já aconteceu várias vezes comigo), ou seja, no fundo, para nós é como se aquele momento nunca tivesse existido.

    Sem nossas memórias o que seríamos portanto? Até mesmo nossa personalidade é definida por isso…

    É algo de deixar louco se pensar muito, rs

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