Você já teve a sensação de sentir o tempo parar quando você está prestes a perder algo? Uma pessoa que vai embora de sua vida, ou um local que você não verá mais, e até mesmo um emprego que gosta muito.
Já pensou no que você poderia fazer para deixar tudo o que você mais ama perto de você? Pensou em todos os sacrifícios?
Se você respondeu sim para alguns dos questionamentos acima, então você está pronto para dialogar sobre perdas e sacrifícios com Michel Ramalho por meio da HQ Légume e o Tempo.
Tempo, tempo, tempo, tempo…
Légume e o Tempo é uma HQ lançada em 2017. Primeiramente, em uma versão independente graciosa no formato 15 por 15 centímetros, quadradinha e fácil de carregar e guardar do lado do coração. Em 2018 a HQ ganhou uma versão pela editora Estrela Cultural (a mesma Estrela dos brinquedos), e no mesmo ano também ganhou uma sequência independente chamada Légume do Lado Avesso.
Légume e o Tempo conta a história de um mensageiro viajante chamado Légume. Em suas caminhadas para entregar as correspondências ele chega em um pequeno vilarejo onde o tempo está parado. As folhas que caíram das árvore estão flutuando, paradas no ar. As maçãs não amadurecem e não crescem mais.
Então, Légume encontra uma garota chamada Anita. Diferente de tudo ao redor, ela se mexe, conversa, interage. Como se estivesse deslocada, além do próprio tempo, Anita se mostrava triste e cabisbaixa.
No meio de vários assuntos ela conta o mistério daquele local. A garota tem em sua posse um relógio com poderes mágicos que pode parar o tempo. E para não perder a irmã, que ela ama muito, decidiu usar o relógio e preservar para sempre este amor.
Porém, congelar os segundos de tudo ao redor, mesmo preservando aquilo que ama, a fez ficar solitária.
O que fazer? Deixar o tempo correr e perder quem ama, ou congelar o tempo e viver sozinha?
Amor ou apego?
Vou me abrir rapidão com você. Durante muito tempo na minha vida tinha a ideia de que quando se ama alguém é necessário ter essa pessoa entre os braços para sempre. E não digo apenas em situação amorosa não, mas com amigos, parentes, coisas e até mesmo ideias.
A vida, numa mistura de experiências, observações e leituras, me fez entender que amar não é carregar e muito menos prender. Amar é deixar. E deixar não significa expulsar as pessoas que se gosta da vida, mas sim, deixar a porta aberta. Ela vai se quiser ir. Mas se quiser ficar é sempre muito bem-vinda.
Quando entendemos sobre isso um bocado de sentimento cai por terra, porque se tornam inúteis, como voltar as horas de relógio achando que o tempo vai voltar também. Sentimentos como o ciúme e o apego se tornam ilógicos.
Légume e o Tempo, de uma maneira bem delicada e tocante, nos coloca para pensar um pouco sobre esses sentimentos e pôr em xeque: o sentimento que chamamos de “amor” é amor mesmo ou é apego?
Máquina do tempo
Interlúdio: Gaiolas
O engraçado é que sempre que falamos sobre como amar é deixar ir, muitos não entendem. E você mesmo neste momento pode não entender. É normal. A dor de deixar o que amamos ir embora é realmente complicada, então, prender e tentar proteger parece ser o mais lógico.
Meu avô tem 85 anos e sempre gostou de criar passarinhos em casa. Ele alimentava com cuidado, deixava a gaiola limpa e confortável, o reservatório de água sempre cheio. Eu mesmo nunca entendia por que era benéfico ao bichinho ficar preso numa gaiola onde ele não pode bater asas. Mas, se eu questionava meu avô sobre isso ele respondia: “Se não ele foge”. Ou ainda: “Gosto de ouvir ele de manhã”.
Foi então que eu percebi, deixar o passarinho preso não era para proteção do animalzinho, mas sim, era alimento do ego do meu avô. Ele tinha outras opções, poderia montar um jardim na casa dele, deixar frutas e piscininhas improvisadas disponíveis para que os pássaros fossem visitá-lo e cantar todos os dias. Mas meu avô escolhia prender o pássaro.
Muros e pedregulhos
Légume e o Tempo não tem pássaros nem gaiolas, não de forma tão literal, mas Michel conversa tão docemente com o leitor por meio do roteiro e da arte, que me fez buscar no passado esses exemplos sobre apegos que parecem ser amor.
Durante as caminhadas de Légume e Anita, já fora do vilarejo onde o tempo andava normalmente, os dois encontram um homem que gostava tanto de sua casa que resolveu construir um muro ao redor para protegê-la. Durante a construção deste muro, uma pedra gigantesca começou a rolar do barranco em direção à casa. A pedra ia destruir a casa inteira, mas o homem segurou a pedra. Sem forças para mover o pedregulho ele ficou ali por dias no impasse: Se soltar a pedra que havia pegado para criar um muro, ela desceria do barranco e ao invés de proteger, iria destruir tudo que amava.
O que você faria? Soltaria a pedra sabendo que ela destruiria a casa, ou ficaria segurando a rocha para sempre, sem nunca mais poder entrar na casa. Ficaria só observando-a de longe intacta, porém, vazia.
O que é amar neste caso?
Bom, eu sei que amar é deixar quem você ama livre e ficar disposto a perdê-la. Mas isso, não quer dizer que você vai perdê-la, porque a liberdade é tão confortável e convidativa, que seu amor vai ficar bem onde está.
Uma história sobre amor
Mas o que aconteceu com a casa afinal? E Anita e sua irmã? Ela deixou o tempo voar livre no vilarejo em que mora? Bem, isso vou deixar você ler Légume e o Tempo para que Michel Ramalho te conte num sussurro.
E não se engane, Légume e o Tempo é uma história de amor. Mas não aquele amor com declarações e romance. É sobre amor, amar e deixar ir. É sobre resignação. Como deixar as coisas ir embora e se sentir leve.
Porque amor não dói. Amor flui. O que dói é quando tentamos prendê-lo de maneira orgulhosa.
Mas, como o próprio autor escreveu “o fato de algo não estar no lugar que esperava não quer dizer que ela não esteja no lugar certo (pra ela)”. Então, está tudo no lugar que deve estar e se apegar é fazer com que doa mais.
A história deixa isso bem claro num abraço caloroso.
Obrigado, Michel Ramalho.
Tudo está certo onde tem que estar
Tico Pedrosa é roteirista, escritor e fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.
Uma resposta para “Deixe o tempo livre para voar”
Impossível não admirar e se apaixonar por este texto tão simples, mas de uma profundeza sem tamanho. Amei.