Roma (2018) | |
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Direção: Alfonso Cuarón Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta |
Minha Cleo é minha avó. Nunca tivemos uma “empregada doméstica” stricto sensu. Então, durante a minha infância, todos os dias, após fazer seu próprio almoço e limpar sua própria casa, minha avó vinha para a nossa, arrumava a cozinha e cuidava de mim e do meu irmão, enquanto minha mãe trabalhava. O que torna a expressão “como se fosse da família” ainda mais complexa, mas…
… O fato é que a minha infância, esse período de formação mais basilar do ser humano em que nos tornaremos um dia, só ganha sentido com a presença da minha avó. Assim como aquele piso de cerâmica do plano inicial de “Roma” só revela seu poder refletor de memórias com a água e o sabão de Cleo (Yalitza Aparício).
A genialidade dessa imagem não é apenas seu apuro técnico, mas como ela sintetiza todo o longa de Alfonso Cuarón (“Gravidade”). Mais que um filme de memórias, “Roma” é um álbum de imagens que só ganham sentido em retrospecto. Vistas e interpretadas pelo olhar do adulto de hoje, mesmo que vividas pela criança do passado.
O abraço desesperado da mãe Sofía (Marina de Tavira) na despedida/abandono do pai Antonio (Fernando Grediaga). Os comentários machistas e gordofóbicos da mãe, e dos irmãos Paco (Carlos Peralta) e Toño (Diego Cortina Autrey), sobre a irmã Sofi (Daniela Demesa). O carro enorme e ostensivo que não cabe (e nunca coube) na garagem, como a metáfora do casamento/família tradicional/perfeita que não se sustenta mais. O caos político de marchas militares e massacres estudantis do México dos anos 70. O astronauta à deriva no espaço, na tela do cinema, como a metáfora do pai que deixa uma mãe decidindo se vale a pena viver (“Gravidade”). A viagem para a praia onde as verdades adultas serão reveladas (“E Sua Mãe Também”). A ordem da mãe para que Cleo se levante no meio do programa de TV e vá fazer chá para o patrão. O olhar de Cleo naquele fim de semana na praia. O silêncio de Cleo.
“Cleo ficou muda”. Cleo não deveria jamais estar muda. Dar defeito. Ela é uma fonte constante e permanente de conforto. Um serviço confiável na tempestade da vida daquelas pessoas, fazendo tudo funcionar. Limpando os cocôs do Borras, que estariam lá de novo no dia seguinte, enquanto seu próprio sofrimento tinha a mesma importância do cachorro se escondendo da chuva – um belo, se cruelmente irônico, raccord visual. (Mais imagens que só fazem sentido agora).
Mas o silêncio de Cleo não é uma covardia, ou uma deficiência, de Cuarón. Pelo contrário. É o reconhecimento de que ele não poderia jamais falar por ela. E mais do que isso, de que ela jamais falaria, naquele momento, com aquelas pessoas, sobre coisas que talvez nem conseguisse articular. O que o cineasta pode fazer é tornar o olhar de Cleo não só o elemento mais potente de seu filme, dando o sentido a todas aquelas imagens, mas o centro da história.
Em “Roma”, Cleo é o sol em torno do qual a câmera todo o filme gravita. Há a História Oficial do México em curso. E há uma dissolução familiar ocorrendo. Mas tudo só acontece em função da história de Cleo. Pela primeira vez, a existência dela não se dá a serviço de alguém, mas o contrário. O filme poderia ser um estudo de personagem intimista, de planos fechados, mas não é. “Roma” é um longa de arte filmado com os planos e o desenho de som grandiosos de um blockbuster. Enquanto o mundo todo girava, e as “grandes histórias”, sempre vistas no cinema, aconteciam, as Cleos estavam ali, vivendo suas vidas, invisíveis. E só agora, Cuarón enxerga que elas são as (super)heroínas dignas desse tratamento épico.
Essa é a forma de ele dizer que finalmente enxerga a grandeza de Cleo. Finalmente a enxerga como uma pessoa, imperfeita, humana, complexa, e não como a varinha mágica que fazia os copos sujos sumirem da pia, e vitaminas aparecerem sempre que desejadas. É sua declaração de amor.
Se eu tivesse o talento de Cuarón (não tenho), também faria um “Roma” para minha avó. Porque tudo que sou hoje, toda minha noção de justiça social, de caráter, de respeito, minha admiração pelo feminino, todos os meus melhores valores – essa noção de “amor incondicional” que as pessoas mencionam quando falam de amor materno – são graças a ela. Essa mulher que entraria num mar sem saber nadar por mim.
E que, devido a uma criação machista e patriarcal (algo que só enxergo hoje, não enxergava na época), também lavou todos os copos sujos que nunca limpei. Os pratos que larguei na pia sem pensar duas vezes. Que fez os melhores pães de queijo que já comi na minha vida, para a família inteira, toda sexta-feira. E que há 20 anos, tem uma dor crônica no braço que nenhuma cirurgia, fisioterapia ou remédio consegue curar. O que me faz perguntar: isso que, para mim, é um amor incondicional, foi para ela, na verdade, um relacionamento abusivo? Foi realmente esse roma-amor ao contrário? É o que Cuarón investiga e se questiona em cada plano de seu filme – sob o peso ainda maior das questões de classe e raça. E, muito generosamente, dá ao seu público o direito de responder.
Uma resposta para “Roma, ou a minha Cleo”
[…] “Mais que um filme de memórias, “Roma” é um álbum de imagens que só ganham sentido em retrospecto. Vistas e interpretadas pelo olhar do adulto de hoje, mesmo que vividas pela criança do passado. (…) Em “Roma”, Cleo é o sol em torno do qual a câmera todo o filme gravita. Há a História Oficial do México em curso. E há uma dissolução familiar ocorrendo. Mas tudo só acontece em função da história de Cleo. Pela primeira vez, a existência dela não se dá a serviço de alguém, mas o contrário. O filme poderia ser um estudo de personagem intimista, de planos fechados, mas não é. “Roma” é um longa de arte filmado com os planos e o desenho de som grandiosos de um blockbuster. Enquanto o mundo todo girava, e as “grandes histórias”, sempre vistas no cinema, aconteciam, as Cleos estavam ali, vivendo suas vidas, invisíveis. E só agora, Cuarón enxerga que elas são as (super)heroínas dignas desse tratamento épico.” (Mais aqui) […]