True Detective, Nietzsche e as estrelas


Nossa avaliação

*Contém spoilers

Rompem as ondas brumosas ao longo da costa,
Os sois gêmeos afundam além do lago,
As sombras se extendem
Em Carcosa.
Estranha é a noite na qual surgem estrelas negras
R.W. Chambers

A não presença do Rei de Amarelo provoca um horror permanente. É o ausente que se torna presente na sensação de que algo está fora do lugar, errado, torto. A obra de Robert W. Chambers foi precursora do terror literário fantástico de H. P. Lovecraft, tratando já no século XIX do vazio existencial provocado por um ser sobrenatural cuja aparição era sempre prenúncio de dor.
E ela está em “True Detective”.

A série criada e escrita por Nic Pizzolato com direção de Cary Joji Fukunaga é na verdade um longo filme de oito horas de duração. Todos os episódios foram escritos e dirigidos pelas mesmas pessoas, em uma temporada com personagens e história que não se repetirão no ano seguinte. A trama acompanha quase duas décadas de investigação da dupla Rust Cohle (Matthew McConaughey) e Marty Hart (Woody Harrelson) na Louisiana atrás de um serial killer autointitulado “rei de amarelo”. Muito bem conduzida, a série conquistou fãs com sua dupla principal fascinante, diálogos literários e momentos inacreditáveis como o plano-sequência de um tiroteio. Muito se discutiu a respeito da identidade do assassino e várias teorias a respeito inundaram a internet. Mas “True Detective” nunca foi sobre “quem matou”, ou sobre quem morreu. Foi sobre quem sobreviveu.

Com uma narrativa que pedia para ser devorada a cada semana, a série estabeleceu como seus dois pilares os dois arcos dramáticos de seus protagonistas. Duas linhas paralelas que, tal qual um paradigma geométrico, nunca deveriam se cruzar. De um lado, o passional Hart (Hart, heart, coração, paixão…). Do outro o cético Cohle (cold, frio?). Mais do que isso, a dinâmica entre os dois refletia o vazio existencial sobre o qual toca a obra de Chambers. Tudo se dando pelo embate entre noções filosóficas fascinantes: pragmatismo e niilismo.

Marty Hart é prático e acredita na ação. Tal qual a concepção originada em William James, John Dewey e Charles Peirce, ele é aberto ao mundo.  Para o pragmatismo, o organismo humano precisa se desenvolver em relação ao ambiente. Somos seres incompletos, que necessitam do encontro constante com o exterior para definirmos o nosso eu. E o que dizer de um personagem que precisa constantemente de outros para se sentir vivo? Sejam os amigos, o parceiro, a esposa, as filhas ou as amantes. O encontro é essencial para que Marty exista, é na ação em relação aos outros que ele toma suas decisões como matar um suspeito ou retomar uma investigação. Ação e reação.

O mesmo encontro que é caro ao pragmatismo provoca também o niilismo. Para Nietzsche é a vida reativa que cria o ressentimento, o encontro com o exterior visto como estopim para a morte do sentido e a desilusão. Rust Cohle perdeu a filha e com ela seu sentido no mundo. As verdades tradicionais foram destruídas. Sua existência não possui mais nenhum sentido. Seu arco dramático vai do niilismo passivo (em que evita o desperdício de força na esperança de um sentido da vida e critica o mundo de falsidades baseado na moral cristã) para o niilismo ativo (em que reina o absurdo e não se pode fazer nada a não ser esperar a morte – ou provocá-la: algo que ele tenta fazer no último episódio).

“Matar” Deus apenas para assumir seu lugar. Quer dizer que o ser humano deve se desfazer dos valores morais tradicionais até que só exista o vazio.  O homem niilista entende que não há nada de eterno após a vida e aprende a entender o viver como um eterno retorno. Em sua concepção nietzschiana, Rust fala do tempo como um ciclo e busca também a morte de uma divindade: o Rei Amarelo. Destruir este ser (no caso um serial killer que se crê uma entidade cultuada) é mais do que encontrar o monstro no fim do labirinto. É desfazer-se de tudo – metaforicamente, claro –, impedindo o ciclo contínuo do eterno retorno à morte da filha (que continuava a morrer a cada nova vítima encontrada). E quando tudo se desfaz, para o niilismo resta apenas o absurdo (afinal, tal qual Dostoiévski, “Se Deus está morto, então tudo é permitido”), tão bem representado nas visões alucinógenas do personagem.

O embate entre pragmatismo e niilismo foi construído aos poucos, ao longo de oito episódios irrepreensíveis, com os atores recitando falas complexas de forma natural. “True Detective” é uma história sobre contar histórias. Os personagens narrando seu passado em reflexão no presente. Assim como as narrativas platônicas que contam histórias para filosofar. Uma trama policial envolvente que na verdade é um estudo de personagem sobre o equilíbrio entre a ação e a não-reação. Prática e negação. Apenas este encontro poderia devolver o equilíbrio ao mundo distorcido pela presença ausente do Rei de Amarelo, uma realidade de incômodos que vai da estranha cena protagonizada pelas bonecas da filha de Marty às ruínas pós-furacão Katrina.

Nietzsche explica que o niilismo é na verdade uma ferramenta para um modo de transmutação. Em resumo, o niilismo deveria ser vencido por ele próprio, e a negação se transmutar em ação. Negar tudo para a partir do nada agir e reconstruir.  Rust, o cético, tem uma experiência de pós-vida durante o coma. Após a morte sobra o absurdo, e o absurdo o leva a crer que, afinal, deve haver um sentido em tudo. O niilismo é vencido por si próprio e é convertido em ação graças ao encontro. O encontro entre Marty e Rust.

O equilíbrio é finalmente atingido, e o otimista se torna mais pessimista enquanto o pessimista se torna mais otimista. Um sempre completou o outro, mas a transmutação se dá verdadeiramente quando Rust, o niilista, precisa se apoiar em Marty, o pragmatista, para conseguir seguir em frente de pé, na saída do hospital. Os dois sobreviveram. Os dois venceram a morte. São imortais. São um só.

Com todos os valores e regras destruídos, não há mais paradigmas, e as duas retas paralelas podem finalmente se encontrar. E elas o fazem em um ponto comum.
Ou melhor, vários pontos comuns: as estrelas que iluminam a escuridão do céu.


3 respostas para “True Detective, Nietzsche e as estrelas”

  1. Belo review, achei interessante como você interpretou os acontecimentos de maneira metafórica. Marty e Rust viraram um só, uma unica estrela lutando contra a escuridão

  2. Renné, Nietzsche não defende a eliminação dos valores e combate o niilismo como uma afronta à vida. Ele defende a criação de valores, a afirmação da vida; ele não consideraria jamais que o mundo está corrompido e que a “luz está vencendo”. Não sugeriria que a humanidade caminhasse de mãos dadas para a extinção. Ele e Rust são incompatíveis.

  3. Duanne, creio que você não compreendeu o texto. Minha comparação não é entre Nietzsche e Rust, mas entre o niilismo e Rust. Nietzsche, James e Dewey foram apenas os autores que usei como base de conceituação niilista e pragmatista, mas sem entrar (até porque não caberia em um texto tão curto)nas “defesas” que cada um faz de suas crenças intelectuais. Mas talvez o uso do autor no título tenha deixado esta proposta confusa mesmo. Abraço.

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