Jornada ancestral


Quantas mitologias sobre deuses você realmente conhece? Se formos enumerar, acredito que muitos sabem sobre a mitologia da gênese cristã (aquela de Adão e Eva), a mitologia greco-romana, alguns talvez saibam na nórdica, alguns sobre mitos de matrizes africanas. Mas quanto de nós realmente sabemos sobre as histórias dos antepassados brasileiros? E não estou falando dos europeus que chegaram aqui, mas sim, dos povos originários, os indígenas. Para mostrar o quanto de riqueza temos em nossa cultura, e que, de maneira geral, não nos importamos, Fabio Gimovski nos leva, por meio de Ancestrais da Terra, para quem são os verdadeiros donos deste país.

Hutukara

Ancestrais da Terra, um quadrinho da editora Urukum, lançada este ano, traz a história de Yãkoanari, um indígena da etnia Yanomami. Ele é filho do criador Omama (o equivalente ao Deus cristão ou Zeus grego), e tem como missão ser o primeiro xamã de sua aldeia.

Mas para conquistar o direito de ser um xamã, Yãkoanari, um filho da floresta, precisa aprender com os ensinamentos dos Xapiri, os espíritos da floresta que protegem os seres humanos, durante sua jornada até a Amoa Hi, a árvore da vida.

Ancestrais da Terra, de uma maneira completamente imersiva nos colocar no seio da criação de toda uma etnia. Mostra que a terra era destinada aos seres humanos imortais, mas que nesse processo de criação, durante a jornada de Yãkoanari, a morte foi aprendida.

Haru Tëhë

Falar de cultura, de criação de um povo, de uma crença que vai muito além da religião, mas que é ensinada de maneira orgânica gerações após gerações pelos antepassados Yanomami, é difícil. Ainda mais, quando é necessário dialogar muitas vezes com pessoas que não tem nenhuma ligação com os povos originários do brasil. Aprendemos, por meio da escola, por meio da mistura de cultura de massas, também, por meio do apagamento dos povos indígenas, determinadas crenças completamente eurocentristas.

Nos achamos, mais próximos dos portugueses que invadiram e trouxe a escassez para nossas terras, do que o indígena que aqui morava. Temos mais afinidade com músicas e entretenimento vindos da América do Norte, alí nos Estados Unidos, do que as melodias e batuques vindas das florestas.

Aprendemos a desmatar e achar normal buscar dinheiro através da extração dos recursos naturais, tão importantes para a vida. Mas ignoramos o sistema simbiótico de conservação necessária entre a natureza e nós, que os indígenas tanto mantêm firme.

Xawara

Ancestrais da Terra é um nado firme contra uma correnteza avassaladora. Um quadrinho sobre o mito de criação dos Yanomami, com roteiro firme nas raízes culturais e uma arte maravilhosa, praticamente um quadro por página.

Mas ao contar sobre o primeiro xamã Yanomami, Fabio Gimovski o faz de maneira bem curiosa: ele mistura contemporaneidade com mitologia. Desta maneira, a história parece se passar nos tempos atuais, com os brancos invadindo as terras indígenas e disseminando uma doença que os povos originários chamam de xawara, enquanto Yãkoanari caminha em sua jornada para se tornar o xamã e salvá-los.

A sensação, é que tudo está conectado: passado e presente. E todas as escolhas terão reflexos no futuro. E talvez, essa sensação seja até proposital.

Xapiri

Durante a jornada de Yãkoanari para se tornar um xamã, a história mostra como Omama, o criador, foi responsável por criar os seres humanos. Em contra partida, o Omama, Yoasi, foi responsável por ensinar ao povo a morte.

A morte, uma vez aprendida, também pode ser manipulada. E hoje, mais do que nunca, vemos o que pode acontecer com a morte entre nós. Fabio faz um paralelo muito explícito da xawara com as doenças que os brancos levaram até os povos indígenas, doença essa que pode ser facilmente a covid-19. A morte, por sua vez, tem uma faceta, um rosto, amedrontador para os dias atuais. Um rosto cruel, apático, sem alma. O rosto de nosso atual presidente.

Ancestrais da Terra ensina muito sobre a cultura de nossos antepassados, os verdadeiros donos da terra que pisamos. Que ainda resistem. Mas muito além disso, ensina aos brancos, ou àqueles que não querem perceber sobre a importância dos povos originários, que tudo está conectado. Tudo é cíclico. A criação de nosso mundo começa hoje, nossos antepassados ainda vivem em nós, e nossos filhos já são sementes que estamos plantando hoje.

Daí eu pergunto, com tantas atrocidades que vemos e muitas vezes passamos panos, simplesmente por escolher um lado político, atrocidades essas que estão nos distanciando tanto de uma real humanidade: essa terra que estamos deixando nossas sementes é fértil para o quê?

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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