Há alguns meses quando escrevi sobre Traços de Giz, de Miguelanxo Prado, fiz com um bocado de paixão em minhas palavras. Prado sabe escrever sobre acaso da vida e o cotidiano de maneira extraordinária. É poético como ele transforma o ordinário em extraordinário. E é assim, com essa capacidade que ele traz nas páginas de Tangências, que eu começo este texto com tanta paixão quanto o texto citado acima.
Duas linhas
Tangências vem como um presente aos fãs do quadrinhista espanhol, Miguelanxo Prado, pois, dois meses depois do lançamento de Traços de Giz, pela Editora Pipoca & Nanquim, a Conrad traz este novo álbum. Um compilado de diversas histórias curtas publicadas a partir de 1987 e compiladas pela primeira vez em 1997.
Essas histórias curtas, onde a história que dá título ao álbum é a segunda do compilado, permeiam o mesmo tema: o término de um relacionamento.
Ora, e quer coisa mais ordinária na vida do que o final de um relacionamento? Mas de tão comum essa situação, como Prado conseguiu extrair sua já tão íntima poesia? A mágica está no próprio formato deste álbum.
Intersecções
Tangências não tem um personagem como protagonista. Não é nenhum homem ou nenhuma de suas mulheres. Ou nenhum ser que consegue passar total realidade nos traços tão característicos do autor espanhol. Não, o protagonista é o ponto de intersecção de cada casal presente na história.
Prado mostra nessas tramas curtas, dotadas de diálogos fortes, que, aliás, é uma das características que mais admiro e amo em seus roteiros, as vidas diferentes de diversas pessoas. É por causa dessa diferença que todas as histórias acabam em um término de relacionamento, mas, de maneira quase que contraditória, como se a vida zombasse dos personagens, é exatamente essa diferença que fez com que aqueles casais se formassem.
Este é o protagonista. As intersecções, a tangência, que em algum momento se toca, mas como qualquer linha reta que se encontra com outra em um determinado ponto, sua direção é sempre a oposição.
Separações
A vida é um constante rompimento sem fim. A cada minuto estamos vivenciando separações. Amigos que vão, amores que diluem, o alimento que acaba, o salário que dissolve em dívidas. Finitude e escassez que nos circula e permeia.
Tão mutáveis quanto a necessidade de dar abundância a essa escassez interminável, são nossos sentimentos. Ora com a absoluta certeza de seguir convicto por um caminho, e muitas vezes, caminho esse, é um relacionamento cheio de paixão; ora com a necessidade de se separar de todos e tudo e viver o máximo possível no casulo da solidão. E se não na solidão, pelo menos, por um tempo sozinho.
É isso todo dia, é isso a cada segundo. Lagarta que vira casulo só para querer virar borboleta e tombos à frente após o voo tornar-se lagarta de novo.
Paralelos
Essa mutação de sentimentos e acontecimentos que transformam paixão em apatia e proximidade em distanciamento é ofertado abertamente como promoção em vitrine por Prado nas páginas de Tangências.
Porque todas as historietas presentes no álbum falam sim sobre términos, mas términos com certezas e convicção. Daquelas escolhas de quem não ama mais, mas que às vezes tenta um último beijo ou última transa para saber que a conexão não existe mais. Se perdeu.
Toda essa mutação de sentimento é endossada pela maturidade. É o que Miguelanxo Prado fala, e eu acredito. Porque de todos os personagens que passaram pelas páginas de Tangências, o único que se desespera no desconsolo do amor é um jovem.
Os outros? Segue na vida cheia de mudanças de sentimentos, acompanhada muitas vezes de apatia e daquela tristeza melancólica trazida com o suspiro do cansaço.
Amadurecer nos muda. Envelhecer dói a alma. E o amor, nisso tudo, se modifica. Mas é então que percebemos que amor de verdade não é cruzamento de retas e explosões de dois fios condutores que se chocam.
Amor é andar paralelo. Mas Prado, não conta isso não, isso sou eu falando, mesmo.
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Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.