Quando eu comecei a ler Shin, HQ nacional do autor Isaac Santos, publicada em 2020 pelo selo Narrativas Periféricas da Editora Mino, tive um misto bem grande de sensações. Isso porque Shin não me pegou como numa voadora, já me deixando embasbacado com a trama de uma vez. Mas, tal como um ninja, a história foi me envolvendo, e quando percebi, estava submerso num mundo paralelo de Shin. Uma ficção, mas que apresenta uma realidade muito viva em mim, que suspirei pesadamente ao fechar do título. E vou explicar aqui como foi essa experiência.
Sacrifícios
Shin conta a história de D, um rapaz que vive numa cidade grande localizada em um futuro não tão distante do nosso. D tem dois empregos. Durante o dia trabalha em um escritório qualquer, onde precisa bater ponto, aturar um chefe que só reclama com os atrasos dos funcionários, enquanto espera ansiosamente todos os dias pelo horário de ir embora, e toda semana pela sextas-feiras. O outro emprego de D é de noite, onde ele é um ninja mercenário e caçador de recompensas.
D tem uma filha chamada Luna. Todas as escolhas e sacrifícios de D são unicamente para dar uma vida melhora a sua filha. Por isso que D esta há oito anos vivendo assim. Aceitando o assédio moral de um chefe dia após dia e se arriscando em missões que podem ser suicidas noite após noite.
Quando a gente ama alguém ou algo, quando há motivo para voltar para dentro do lar sempre que sai para trabalhar, ou mesmo, buscar um emprego, sacrifícios passam a ser quase que corriqueiros. E, em sua etimologia, sacrifício não era para ser pesado, e sim, sagrado. Porém, quando se faz do suor sangue, a dor lateja muito mais no corpo. O sagrado fica sangrento, e mesmo com o balsamo de voltarmos para casa todos os dias e ficar ao lado de quem amamos, o domingo de noite sempre chega com a depressão. Já que segunda-feira será dia de passar horas no trânsito, outras horas em uma empresa, só para ter mais alguns trocados depois de trinta dias.
D e Luna
Ciclos e salários
Aqui eu vou delimitar uma linha muito importante para a continuidade desta narrativa. Há empregos que são sonhos para pessoas, locais despojados, sem cobranças ou pesos, com salários decentes (e as vezes, até justos), com funcionários motivados. Mas a maioria é um peso. Trabalhamos porque precisamos de dinheiro e muitos lugares não deixam de lado a oportunidade de fazer os funcionários de escravos. Ganham pouco, recebem assédio, são desvalorizados e tratados como uma simples engrenagem que só serve para fazer o dono do local ganhar muito dinheiro.
Eu mesmo tenho em minha experiência uma coleção extensa de empregos ruins. Locais geridos por pessoas que não tinham competência e, por privilégio, ocuparam posições de gerentes ou presidentes. Locais que contratavam estagiários só para economizar e cobrava deles uma responsabilidade de alguém com cargo e função muito maior. Empresários que se achavam grandes professores e se colocavam como intelectuais acima da sociedade, só para ser bajulado, chegando a falar absurdos como “morador de rua é o câncer de uma sociedade, e a solução é colocar todos em um navio e afundá-los”. Donos de empresa que olhavam a folha de ponto dos funcionários para descontar qualquer centavo por punição ao chegar atrasados às vezes cinco, ou dez minutos. Até mesmo ricos que se achavam o centro das atenções e gerenciavam seus negócios de longe, simplesmente por não querer ser questionados, ou aceitar ideias de funcionários.
Eu fiquei por meses e anos em vários desses empregos, só por conta do salário. Precisava de dinheiro para pagar estudos ou mesmo ajudar nas contas de casa.
Regime semiaberto
O peso e a obrigação de aceitar desaforos e situações horríveis no trabalho é pior quando se tem filhos, vive em periferia, é arrimo de família. Então, a ida ao trabalho, muitas vezes pegando um transporte público lotado em completa desumanidade, e a permanecia dentro de uma empresa se torna praticamente uma prisão.
Na maior parte da nossa vida estamos dentro de um ambiente de trabalho, e é deprimente perceber que, com tantos ambientes ruins, a maior parte da vida de muitas pessoas é praticamente um presídio cotidiano, onde o carcereiro é o dinheiro no final do mês.
A arte de Isaac Santos leva um estilo de mangá para periferia
Paciência é sabedoria
O mito do “ah, mas todo esforço engrandece as pessoas” só fomenta ainda mais as situações precárias em trabalhos, enquanto há uma elite privilegiada que não passou por um décimo de sofrimento e está no maior conforto. Ainda tem o “se você não quiser esse emprego, tem quem queira”. E tem mesmo. Por isso os salários estão cada vez menores os subempregos cada vez mais exigentes. Sempre tem alguém precisando.
Por isso, não dá para jogar tudo pro alto e seguir os sonhos de uma vez, porque os sonhos precisam de construção. E quando você já começa a corrida em desvantagem, essa construção pode demorar muito mais.
E mascarado de uma história sobre um ninja em final de carreira, a história sobre uma última missão, Shin é sobre paciência. Sobre cuidar daqueles que ama e se dedicar, mesmo cansado e abatido.
É sobre escolher permanecer em um caminho difícil, simplesmente porque não foi apresentado outra opção de caminho, mesmo assim seguir, no cansaço e no desânimo porque os sonhos ainda estão sendo construídos e tudo o que você mais ama é a base o fundamento deste sonho.
Dá seus pulos
Em Shin, Isaac deixa claro que precisamos nos virar de algum jeito para conseguir alcançar nossos sonhos. Ser ninja, desembainhar a espada e ir à luta. E o mais legal de tudo isso é a capacidade da HQ mostrar essas questões de uma maneira bem leve, quase que comercial.
Shin se mostra, logo de cara, um quadrinho fácil de ler e simples de gostar. Tem ação, tem brasilidade, tem ninja. Como as coisas podem ficar ruins com ninja? Isaac Santos ainda traz em seu estilo um desenho com boa movimentação e um uso marcante de hachuras. Difícil não ler e se lembrar diretamente do mangá Samurai Afro.
Mas, se você tiver disposto a ir para as profundezas, consegue fatiar as camadas de uma trama que carrega muita vivência em periferia. Aquele corre do dia a dia, do ônibus lotado e do trabalho assalariado que cansa, mas que traz um balsamo a cada chegada em casa, ou a cada funk e samba no final de semana.
Fé
Eu, realmente, não gosto dessa história de como a dificuldade enobrece as pessoas. Mas admito que, de uma perspectiva moral, ter menos facilidade pode levar a caminhos mais esclarecidos, pelo menos espiritualmente. O grande exemplo disso está na psicologia infantil, que diz que quanto mais você faz as coisas por uma criança, ao invés de ensiná-la, menos ela vai conseguir se virar sozinha. Então, acredito que isso vale para a nossa alma, quanto mais problemas resolvemos, mais estamos fortes e aptos para viver.
A questão é que chega um momento que cansa e parece que toda a batalha não vinga no final. Shin carrega em suas páginas uma sensação de fé muito grande, porque mesmo com as dificuldades diárias no trabalho de D, e mesmo com o perigo que ele enfrenta como mercenário, ele escolhe largar a vida de caçador de recompensa para se dedicar a filha Luna.
Os nossos sonhos podem ser grandiosos como uma grande árvore, mas independentemente do seu tamanho, o princípio é sempre uma semente. E na natureza, uma árvore passa por calor intenso, tempestade, pragas naturais, e uma série de adversidade enquanto cresce.
É normal sentir inveja com privilégio de tantos que têm suas árvores crescendo sem dificuldade. Mas podemos deixar um pouco a brisa fácil do outro lado e olhar com carinho para as nossas dificuldades como adversidades necessárias para a semente de nossos sonhos geminar, crescer e fortalecer
E isso vai adiantar? Ser passivo é a solução? Mas é claro que não. Porém, tirará o peso das costas, a corretes das pernas e as algemas dos pulsos, para que, com mobilidade e leveza, a resposta sobre as mudanças seja transformada em ação com mais rapidez. Seja essa ação a busca por uma mudança, ou por uma revolução.
“Get over here”
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Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.
Uma resposta para “O ninja da periferia (ou a maior fatia dos assalariados)”
[…] de raciocínio preconceituosa para dizer como isso acontece aqui, na vida real. No texto sobre a HQ Shin eu citei um ex-chefe que falava que os moradores de ruas eram câncer da sociedade e que, tal como […]