2020 foi definitivamente um ano de introspecção. Com a pandemia surgindo e colocando toda a população dentro de casa (pelo menos nos primeiros meses em que ainda havia medo e dúvidas, pois dificilmente houve ou há empatia), as pessoas começaram a olhar para dentro de si. Não porque estávamos mudando e evoluindo como sociedade, mas porque batíamos palmas na janela e ficávamos lembrando de coisas nostálgicas por não ter nada melhor para fazer. E for por conta dessa onda de nostalgia que X-Men: Grand Design de Ed Piskor se encaixou perfeitamente no contexto brasileiro.
Os anos de 1960 em duas ilustrações
Olhos no passado, ouvidos no presente
Todo mundo curte uma música considerada clássica. E se você diz que não, tenho certeza de que se esbalda cantado Evidências, ou ainda qualquer música da playlist do Raça Negra. Música é arte, e muitas vezes, completamente homogênea com a arte visual. E não há ligação mais íntima entre som e imagem do que o Hip Hop. É quase uma relação de amor.
Sabendo disso, Ed Piskor, autor da HQ ganhadora do Eisner Hip Hop Genealogia (lançando por aqui pela Editora Vendetta) faz uma carta de amor aos X-Men. Fã desde criancinha das histórias dos Mutantes, Piskor inaugura, em 2017, a série Grand Design e organiza a cronologia desses heróis.
E por ter chegado por aqui no ano da pandemia, esta obra me fez refletir sobre três aspectos:
Primeiro: Nostalgia para os fãs
Nunca fui muito fãs das HQs dos X-Men, admito. Quando eu era uma criança crescendo nos anos 1990, acompanhei muito as HQs da Image e DC Comics, e na Marvel só Homem-Aranha. Mas, um dia estava passando em frente a uma banca de jornal e, com uns trocados que minha mãe me deu guardados em bolso, decidi comprar O Melhor dos X-Men número 2, com a saga O Massacre de Mutantes. Amei aquela HQ de uma maneira incontrolável e a li várias e várias vezes.
Depois disso, passei nas bancas mais algumas vezes para comprar aleatoriamente algumas edição dos X-Men, claro sem entender absolutamente nada sobre a continuidade, só lia mesmo. Mas os Mutantes para mim era aquele tipo de caso que você nunca assume um relacionamento, mas eventualmente, saem e curte a noite. Ou aquela música de uma banda que você não é fã, mas sem perceber, está ouvindo no repeat.
Mesmo assim, percebo como Grand Design transborda nostalgia. A arte de Ed Piskor emula tão bem os desenhos clássicos de Jack Kirby que, se você sair lendo o álbum, nem percebe que no final tem uma republicação da HQ X-Men de 1963 e sai lendo como se fosse uma cosa só.
Todo o layout, a escolha do papel e a coloração nos leva ao passado. E no ano em que falou-se muito em buscar a essência, parece que com essa HQ na mão, a essência ganhava cor, textura e cheiro.
Mas, X-Men: Grand Design é muito mais do que uma republicação reescrita e redesenhada por um autor moderno. O que nos leva para o segundo ponto.
Parece Jack Kirby, mas é Ed Piskor
Segundo: Um resumo para os novos leitores
X-Men é uma bagunça. E não estou dizendo isso só porque eu lia as HQs de maneira toda aleatória quando eu era pequeno. A cronologia é toda bagunçada. Não entendo por que as pessoas reclamam dos filmes da FOX, já que a essência da desorganização está ali, vivíssima nos 13 filmes e 2 séries.
Por isso, o que Ed Piskor faz é quase uma utilidade pública. Só quem ama mesmo ia conseguir organizar cronologicamente as aventuras dos X-Men que foram ambientadas durante os anos de 1960. E não estou falando das HQs lançadas naquela época, mas sim de pegar os principais retcons que foram posteriormente lançados e colocar tudo em ordem. Resumidinho. Fazendo sentido.
Da aparição de Namor até o final da era de ouro dos Mutantes. Passando pela formação e desenvolvimento da Primeira Classe, com Cyclops, Homem de Gelo, Anjo, Fera e Jean Grey, e pela consolidação da Irmandade de Mutantes, começando com Magneto, Feiticeira Escarlate e Mercúrio. Está tudo lá. Cada vilão canastrão, cada uniforme feio, Sentinelas e até mesmo uma explicação simples sobre a força fênix e os seres que estão atrás dela, muito antes dessa energia cósmica possuir Jean Grey.
É impressionante a facilidade narrativa de Piskor, de explicar acontecimentos usando muito recordatório e muito texto (tão como as HQs clássicas) mas sem ficar maçante ou prolixo. Tornando assim, um quadrinho perfeito para os novos leitores que querem saber a verdadeira origem dos X-Men de maneira fiel e organizada.
Mas X-Men não é sobre “pessoas que nasceram com superpoderes e montaram uma equipe”. E as histórias dos Mutantes falam muito mais sobre o comportamento da sociedade do que qualquer coisa. Piskor também coloca isso em sua HQ.
Terceiro: O contexto social
Claro que toda a grandiosidade dos X-Men não seria nada sem o apelo social que as histórias dos Mutantes carregam. Em Grand Design os questionamentos sobre racismo e intolerância estão presentes, mesmo que apenas no início da história para servir de contextualização. O que já é suficiente.
Manifestações públicas de ódio. Pessoas que tem medo do diferente, e que não querem perder seus privilégios gritando frases preconceituosas. A perseguição às minorias com um discurso que se diz conservador e em proteção à “família tradicional humana”.
X-Men é sobre o reflexo podre da nossa sociedade que mascara a pior face do preconceito usando o nome de Deus, uma bandeira patriota e o pretexto do conservadorismo. Na vida real, não há Mutantes, mas há mulheres, pessoas negras, um vasto grupo de LGBTQIA+, indígenas, pessoas com deficiência. E muitas outras pessoas que têm sua vivência e seu lugar de fala em mais de um desses grupos.
X-Men é a ficção que foi criada no início de 1960, mas que é realidade atualmente.
Tem um amigo meu que fala que “a ficção faz sentido, a realidade não”. Definitivamente não acredito nessa frase. Porque ficção é um recorte da realidade. O ato de contar história nunca foi só entretenimento, sempre foi uma expressão social, e muitas vezes um grito de socorro ou um apelo de cansaço. Sempre foi um ato de revolução. Você pode até não enxergar, mas a fantasia e a ficção é só a realidade pintada de maneira mais lúdica para ensinar por meio de metáforas.
Por isso, não faz sentido gostar de X-Men e ser contra qualquer movimento de minoria ou maiorias oprimidas. Não dá para gostar de X-Men e ser racista, machista, LGBTfóbico, xenofóbico, porque mostra que na verdade você não entendeu nada de X-Men. Da mesma maneira que não dá para gostar de Star Wars e ser a favor de regimes totalitários e extremistas, apoiar a ditadura militar ou mesmo governos que pregam o ódio ao invés da igualdade.
Um dos piores uniformes dos X-Men
A música está na alma
O pior que essa falta de interpretação e compressão não estão apenas nos consumidores de quadrinhos e filmes. Lembro de quando Roger Waters fez um show em São Paulo em 2018. Neste show, projetou o nome do Bolsonaro numa lista de Neo Facistas, e logo em seguida a hashtag #EleNao. Parte do povo vaiou, e um colega que trabalhava comigo, que ouvia Pink Floyd, disse que Waters estava errado. Certo ou não, questionei se esse meu colega, e todos que vaiaram no show, prestaram bem atenção em letras como Another Brick in the Wall? Se sabiam realmente o que estavam ouvindo ou consumindo.
E por falar em música, Ed Piskor, por estar tão próximo do movimento Hip Hop, levou as batidas dos samples para as páginas de sua HQ dos X-Men. A essência de um movimento de periferia que transborda pelas páginas de Hip Hop Genealogia, escorre também pelas páginas de Grand Design.
As batidas das passagens dos anos e das aventuras dos Mutantes são mais do que o tic e tac de um relógio, mas sim, são ritmadas como o bater de coração.
Quando eu disse, no começo deste texto, que 2020 foi um ano introspectivo, bom, pelo menos para mim foi. Voltei a me conectar com minha essência e minha juventude na periferia. E não tem como negar, a trilha sonora daquelas ruas mal asfaltadas era o rap.
Talvez, por isso X-Men: Grand Design me tocou tanto, porque ela é muito além de uma antologia das histórias clássicas de Stan Lee e Jack Kirby recontadas de maneira moderna, ela é música, é Hip Hop, é rap. É tão periférica e marginalizada como a própria essência dos mutantes, que são colocados de lado na sociedade, porém vem em um formato não convencional para dizer com letras garrafais: “Ela não é uma HQ qualquer. Ela é arte.”
A evolução é arte
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Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.