Selvagens na selva de pedra


Pessoas morando na rua é algo que já faz parte do nosso cenário cotidiano. O que é ruim, pois quanto mais nos acostumamos a ver pessoas nesse tipo de situação, mais relativizamos e mais elas se tornam invisíveis. Como é mesmo a frase que muitos costumam dizer? “Cada um precisa aprender com a adversidade da vida”. Ou aquela clássica e extremamente pior: “Eles estão morando na rua porque querem”. Me dói demais ver pessoas vivendo na rua, ou melhor, sobrevivendo. Mas dói muito mais quando no meio dessas pessoas, há crianças morando junto. Gabú coloca o dedo na ferida e mostra em sua HQ Crianças Selvagens que os verdadeiros selvagens e predadores nesta selva de pedra são aqueles que movimentam as engrenagens de uma sociedade tão desigual.

Na barriga da baleia

Em 2020, a editora Mino lançou o projeto Narrativas Periféricas e publicou seis HQs feitas por artistas que vivem e que dialogam com as periferias. Crianças Selvagens, por Gabú, é um desses quadrinhos.

A HQ conta a história de Borrão, um garoto negro que morava na periferia, mas decide fugir de casa depois de sofrer constantemente maus tratos na mão de sua mãe e do homem que vive com ela.

Depois de fugir, Borrão encontra Pardal, um menino de rua, e ambos passam a morar em um parquinho abandonado. Já completamente à margem da sociedade, vivendo como párias, os meninos decidem passar os dias fantasiados de pássaros até se juntar a uma nova garota que também fugiu de casa, Canário. Os três passam a morar juntos na rua, que mesmo com sua hostilidade, era mais lar do que a própria casa em que viveram.

Tal como Pinóquio e Jonas, do Velho Testamento, que foram engolidos por uma baleia, Borrão, Pardal e Canário, moram dentro de uma baleia de brinquedo. Mas aqui, o rito de transformação é muito diferente daqueles explicados em fábulas e mitologias, pois não existe caminho para evolução quando o futuro é nebuloso e embaçado.

Desumanização

É curioso como em uma história de 50 páginas, Gabú consegue nos encher de referências e camadas que fazem pensar em diversas situações. Por isso, aconselho ler Crianças Selvagens mais de uma vez, e sempre com atenção.

Talvez a mais gritante seja a desumanização. Em nosso cotidiano, a sociedade já faz isso por si só. Para muitas pessoas, moradores de rua não são mais importantes do que cachorros. Crianças no farol são sempre trombadinhas mal vestidos e mendigos são o câncer da sociedade (sério, eu trabalhei com um chefe que falava exatamente isso). Ou ainda, muito pior, são pessoas que passam completamente despercebidas, como se estivessem passando ao lado de um simples animal, objeto ou árvore. E olhe lá! Pois, essa comparação pode estar errada, já que animal, objeto e árvore não são invisíveis. Moradores de ruas são. Negro periférico, geralmente, também é.

O que me leva a crer que para ser considerado humano não basta viver, precisa ter um teto, uma roupa nova e passada, estudo, emprego e a cor certa. Não tenha dúvida, a cor importa demais. Gabú mostra isso nas sutilezas dos diálogos de sua história e nos acontecimentos que se desdobram nela. Uma criança preta é só uma criança preta, como todas as outras.

Logo, é sensato que elas se vistam como pássaros, pois desta forma elas podem ser verdadeiramente livres. E não só livres por viverem soltas na rua, mas livres porque elas podem ser notadas. Quem é invisível está encarcerado na prisão da indiferença e para se libertar, precisa ser notado.

O grande problema é que prego que se destaca é martelado.

Não voa tão perto do sol

Como na mitologia de Ícaro, é melhor não voar perto do sol. E não só porque você pode se queimar, mas também porque você chama atenção, está no topo. Claro, Crianças Selvagem não fala sobre ascensão social, mas sobre liberdade e sobre como é difícil viver com a existência de tantas algemas sociais. Algemas que vemos por aqui desde que o primeiro português invadiu as terras brasileiras.

Então, viver livre sendo negro em uma sociedade que prefere que você esteja encarcerado, é se destacar para ser caçado, apedrejado. Agora, imagina esse contexto para os garotos pobres que vivem na rua e precisam tirar seu sustento de lá.

“Ah, mas eles não querem ajuda?” Será mesmo? Que tipo de ajuda eles têm? Quais são as escolhas deles?

Riscos e borrões

Mas como traduzir tudo isso e obviamente muito mais que meus olhos cheios de privilégios não conseguiram ver? Como transformar tantos significados em arte sequencial? Gabú opta pelo simples, mas de uma maneira não magistral que chega a ser perfeita dentro de sua desconstrução.

Os desenhos são feitos diretamente no lápis 6B, nada é completamente preto. Há falhas por todos os cantos e cada preenchimento é feito com borrões que ultrapassam linhas grossas.

Há sentimento, há raiva, mas há precisão. É quase um grito gutural que clama muito alto por liberdade. Crianças Selvagens é precisa em mostrar que a verdadeira selvageria não está no corpo daqueles taxados como tal. Que os jovens no semáforo não estão simplesmente matando aula por drogas e muito menos sendo explorados por pais ou adultos.

Claro que essas coisas acontecem, não estou as negando. Mas vai além, muito além do que nossos olhos conseguem perceber.

O maior cego é aquele…

Borrão tem esse nome por não enxergar direito, ele precisa de óculos e por ser pobre, periférico e morador de rua, não tem dinheiro para exames em oftalmologistas, nem para gastar centenas em armação e lente. Borrão não vê direito. Mas quantas pessoas que usam óculos, estão vendo o mundo através do vidro do carro, têm dinheiro para cirurgias de correções de grau não conseguem corrigir o próprio pensamento e são cegos por opção. Sim, opção. Pois quem mora em prédios altos e olha a favela pela janela (e isso não é metáfora, aqui mesmo em São Paulo, prédios em bairros de classe alta são praticamente vizinhos de favelas. É cruzar uma rua para se chegar ao abismo social), mas não vê nada, com toda certeza, escolheu ser cego.

E é muito mais fácil virar as costas para isso, ligar o ar-condicionado, e seguir no privilégio.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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