Green Book (2018) | |
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Direção: Peter Farrelly Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini, Sebastian Maniscalco |
A primeira coisa que você precisa saber sobre “Green Book: O Guia” é que seu roteiro foi escrito por Nick Vallelonga. Ele é filho do protagonista Tony Lip (Viggo Mortensen), motorista ítalo-americano que conduziu o virtuoso pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali) durante uma turnê pelo sul racista dos EUA em 1962.
E o que isso significa é que o filme não é sobre a experiência de um grande artista negro encarando a versão mais brutal do racismo norte-americano. Mas, sim, o olhar idealizado de um filho afirmando que, mesmo que seu pai dissesse algumas coisas racistas, e fizesse algumas coisas racistas, ele não era racista. Simplesmente não tinha encontrado o negro certo (a versão racial do “ela não é lésbica, só não conheceu ainda um homem de verdade”).
Mais que isso, “Green Book” é a história de Tony ensinando Don o jeito correto e aceitável de viver sua negritude. Afinal, tudo se torna muito mais fácil se ele for dócil e se encaixar nos estereótipos e expectativas de um homem branco médio. Um negro educado, talentoso, refinado e que se recusa a fazer reverência, como o pianista, é algo muito incômodo, ameaçador e desagradável – agora, se você for um homem branco médio, glutão, jacú e racista, pode até vir a ser o presidente dos EUA. Ou do Brasil.
Isso deixa claro como o filme é a versão de Tony da história. O melhor exemplo disso é a sequência em que Don passa pela situação mais humilhante e preconceituosa da viagem, em uma sauna da YMCA, e o roteiro torna o episódio uma prova cabal da compaixão e tolerância do motorista – chegando ao ponto (bizarro) de fazer o pianista negro se desculpar pelo racismo e homofobia de que foi vítima. Trocando em miúdos, “Green Book” é uma versão cinematográfica daquela defesa de que você pode até votar em um candidato racista, ou fazer e dizer coisas racistas, mas se achar Aretha Franklin, Whitney Houston e Beyoncé grandes cantoras, no fundo, no fundo, não é racista.
E o grande perigo do longa é que ele faz isso relativamente bem – em alguns momentos, muito bem – graças, principalmente, ao talento de Viggo Mortensen e Mahershala Ali. Do Tom Stall de “Marcas da Violência” ao Ben de “Capitão Fantástico”, Mortensen construiu uma carreira transformando homens falhos e complexos em seres humanos carismáticos, e o que ele faz com Tony é mais um exemplo perfeito disso. E por mais que o roteiro se recuse – por não querer, e por ser assinado por três homens brancos – a mergulhar na experiência interior de Don Shirley, Ali faz um verdadeiro milagre com o que tem em mãos. No papel, o músico é uma caricatura inverossímil do “artista empertigado”, com cenas patéticas como as do frango frito ou do Little Richards (algo que a própria família dele já desmentiu). Toda sua dignidade e humanidade vêm dos momentos que o ator vencedor do Oscar encontra para expressar a reação do personagem ao que encontra na viagem por meio de silêncios e olhares mais realistas que todo o roteiro.
E ainda que a realização do diretor Peter Farrelly (“Quem Vai Ficar com Mary?”) seja absolutamente invisível e sem personalidade, com direito a trilha melosa nos momentos dramáticos e um grande confronto sob a chuva no clímax do filme, seus anos de comédia dão a ele um bom senso de ritmo, e a história flui. E flui bem porque é familiar, razoavelmente divertida e reconfortante, reafirmando como tudo vai ficar bem se ouvirmos a sabedoria popular do homem branco e o deixarmos no volante da história. “Green Book” é um longa sobre racismo para pessoas brancas. Existe uma outra versão possível desse mesmo episódio histórico, a partir da experiência real e interior de Don Shirley durante aqueles dois meses. No entanto, não é o filme que Farrelly, Vallelonga & cia. têm interesse em, ou talento para, fazer.