Nunca fui muito com a cara do Roger Waters. Seu jeito antipático, sua vontade de monopolizar todo o processo criativo do Pink Floyd e seu ego mais inflado do que o balão gigante em forma de porco que é jogado sobre o público na turnê do “The Wall” sempre foram um incômodo.
Seu papel no fim da banda e a prepotência em achar que o grupo não deveria continuar sem ele tampouco ajudam. Isso seria um problema num concerto no qual os telões de altíssima definição insistem em exibir sua imagem, gigante e onipotente em seus óculos escuros e sobretudo de couro, como uma nova versão do Big Brother de Orwell (só que, aqui, é o público que o observa, sem tirar os olhos). Mas não é. Qualquer argumento contra Waters desaba, assim como o muro que é construído no palco durante o show, diante da grandeza do espetáculo que lotou o Morumbi no domingo.
Desde os fogos de artifício que acompanham as marteladas do riff de “In The Flesh?” até o singelo final, com toda a banda à frente do palco, em “Outside The Wall”, não há nada que fuja de um rigoroso script. Cada passo de Waters é planejado, e só assim para fazer funcionar seu projeto megalomaníaco, a menina de seus olhos, do qual ele cuida com a mesma superproteção da mãe do personagem Pink, retratado na história por trás de “The Wall”.
O tom vermelho predominante no palco, os efeitos visuais nos telões e no muro e o sistema de surround sound que rodeia o estádio criam o ambiente ideal para a sensação claustrofóbica do disco, que só ganha seu pleno sentido na turnê. A dimensão visual do álbum, mais ainda do que no filme “Pink Floyd: The Wall”, é bem representada pelos bonecos, projeções e pirotecnia, e entra em total consonância com a música, o que impede que o show seja de uma grandiloquência vazia, do exagero pelo exagero. Em alguns momentos, era difícil saber para onde olhar – se para os músicos, o muro, os telões ou as caras abobalhadas na plateia.
Num show repleto de críticas ao capitalismo (e não deixa de ser contraditória a presença de uma pista premium – ela, sim, uma barreira a separar o palco da maior parte do público), símbolos de grandes corporações caem, como mísseis, dos aviões durante a projeção de “Good Bye Blue Sky”, enquanto o porco inflável jogado sobre a plateia em “In the Flesh” traz os dizeres “O novo código florestal vai matar o Brasil”. Já “Young Lust” deixa a política de lado para exibir belas mulheres nuas nos telões, no momento privê à la Multishow do concerto.
Na melhor parte da primeira metade do show, o ex-pink floyd avisa: “Achava que ‘The Wall’ era sobre mim, mas descobri que é sobre todos nós”, para então emendar “Mother” (desculpe, Waters, mas qualquer um que já ouviu falar de Freud já sabia que essa era sobre todos nós). “Nem fudendo” é a resposta projetada no muro sobre a pergunta feita num dos versos da canção, que indaga se devemos confiar no governo.
A introspectiva “Hey You” chama os espectadores na abertura da segunda metade, com o muro já completo, e a expectativa para aquela que é a grande música de “The Wall” só aumenta. Tão logo o verso final de “Bring the Boys Back Home” pergunta “Is there anybody out there?”, a bateria de “Comfortably Numb” vem logo emendada e levanta plateia, como se ela respondesse: “há, sim”. “Run Like Hell” é acompanhada de palmas ritmadas por todo o estádio, num fervor de dar inveja a qualquer torcida organizada.
Após a perturbadora “The Trial”, sustentada pela belíssima animação que Gerard Scarfe fez para o filme, e a apoteótica queda do muro, o que resta é a sensação de um show milimetricamente impecável (além de alguns pedaços dos falsos tijolos, para os felizardos próximos ao palco). Ao final, assim como o porco inflável que o público esvaziou durante o show, o ego de Waters já não importa mais. Ok, Roger, acho que minha antipatia acabou.