Dentro de poucos dias os fãs irão entrar em uma estréia de “Harry Potter” pela última vez. “Até que enfim!”, alguns irão dizer, quando tiverem a oportunidade de ver o oitavo (oitavo!) filme da série. Muitos ficarão querendo mais e terão que se contentar com a experiência periférica de extras de DVD, games, parques temáticos e tudo o mais. Mas o que a maioria vai continuar a se perguntar é: porque esse sucesso todo? Qual o segredo da franquia bilionária do bruxo adolescente que saiu da cabeça da autora J. K. Rowling, então uma mãe solteira desempregada em uma longa viagem de trem?
Muitos tentaram (e ainda tentam) reproduzir a receita criada por Rowling, com diferentes graus de sucesso. E, no entanto, ninguém chega nem perto da obra da autora britânica. Talvez porque a própria Rowling nunca tenha tentado conscientemente desenvolver uma fórmula: o que aconteceu foi uma série de felizes coincidências que fizeram com que uma estória de fantasia infanto-juvenil cheia de clichês e com tudo para dar errado (o gênero estava capengando, fantasia estava fora de moda e estórias de colégio interno eram ainda mais démodé), obtivesse um sucesso estrondoso.
Hoje existem incontáveis sites de fãs, contendo toneladas de fanfics e fan-art (estórias e desenhos criados pelos leitores), fóruns de discussão com debates acirrados em torno de temas diversos como as ships (relacionamentos amorosos entre personagens). Há até um gênero musical conhecido como Wizard Rock, que consiste só de músicas sobre a série.
Quem conhece a franquia só pelos filmes, deve ficar sem entender o porquê de todo esse auê. Tá certo que os filmes são legais – alguns são até ótimos –, mas para compreender o fenômeno é preciso ter lido os livros, de preferência todos eles. Não que os sete volumes escritos por Rowling sejam obras de arte da alta literatura… Pelo contrário: são perfeitos exemplares da cultura pop. Não é pela originalidade dos temas que se destacam. Estórias similares existiam há décadas, como a graphic novel Livros da Magia, de Neil Gaiman, que tinha como protagonista um bruxo adolescente muito parecido com Harry. O que deixa os leitores grudados em cada página é a execução, o cuidado e o esmero na criação de um mundo ficcional que em muitos aspectos é esdrúxulo, mas sempre impressiona pela profundidade e quantidade de detalhes.
Vamos conferir, então, algumas das principais qualidades dos livros de Harry Potter que permanecem, em diferentes medidas, inimitáveis.
A vida é mais do que enfrentar o cara do mal
“Harry Potter” é a história da batalha do herói e seus amigos contra o vilão Voldemort. Mas não é só isso… É também, e principalmente, a história da vida do jovem bruxo no mundo mágico e secreto criado por Rowling, e seu crescimento dentro da escola de bruxaria de Hogwarts.
A autora cria um mundo incrivelmente detalhado, em que a magia está presente em cada aspecto da vida cotidiana dos personagens: do café da manhã no salão principal do castelo, onde a comida aparece magicamente, às aulas de feitiços, poções e até História da Magia, com direito à disputa entre as quatro “casas” de Hogwarts. De fato, a vida cotidiana dos personagens é tão divertida que, ao invés de torcer por acontecimentos extraordinários que rompam o marasmo, nos vemos preocupados que alguma coisa vá atrapalhar as partidas de Quadribol do time de Harry ou vá custar pontos à Grifinória. Nesse mundo, os abusos dos tios nojentos de Harry ou as provocações de seu rival Draco Malfoy são tão graves quanto as maquinações de Voldemort.
Esse é, com certeza, um aspecto importante da experiência dos livros que passa batido a quem só conhece a história pelo cinema. O motivo disso é compreensível, claro: é preciso cortar, editar e resumir a trama para que caiba em duas horas e pouco de filme, e os detalhes do dia-a-dia dos personagens são os primeiros a cair.
Tudo está interconectado!
Quem lê “Harry Potter e a Pedra Filosofal” mal começa a ter idéia de quão intrinsecamente interconectados são os detalhes do mundo criado por Rowling. Em primeiro lugar, sempre há um mistério a ser resolvido: quem está atrás da tal Pedra Filosofal, afinal? Quem é o herdeiro da Sonserina, que abriu a Câmara Secreta? Qual é a desse Sírius Black, que fugiu de Azkaban? Quem colocou o nome de Harry no Cálice de Fogo e por quê? Que arma é essa que Voldemort procura, e como a Ordem da Fênix poderá detê-lo? Quem é o Príncipe Mestiço? O que são, e onde estão, as Relíquias da Morte (e os Horcruxes)?
Já no primeiro livro podemos notar, é claro, que cada detalhe conta: a pedra filosofal é mencionada primeiro em uma figurinha que vem como brinde em um sapo de chocolate. Outras pistas aparecem em artigos de jornal, conversas inocentes entre professores, etc. O leitor atento consegue solucionar o mistério antes dos heróis, e irá descobrir, por exemplo, que o vilão da história não é o antipático professor Snape, mas o aparentemente inofensivo Quirrell.
Mais do que isso, há mistérios e interconexões que permeiam os diferentes volumes da série. Quem lê “A Câmara Secreta” descobre um pouco mais sobre a história de Voldemort, mas aprende também o motivo de a varinha de Hagrid ter sido quebrada, e que o fato de Harry conversar com uma cobra ainda antes de ir para Hogwarts pela primeira vez não era um simples caso de uso acidental de magia. Quem lê “O Prisioneiro de Azkaban” descobre mais sobre Sírius Black (que é mencionado já no primeiro capítulo do primeiro livro!). Cada novo volume revela mais sobre o passado, preenchendo com mais detalhes o universo criado por Rowling, com uma coerência de dar inveja a qualquer autor de ficção.
A coisa vai ficando cada vez mais séria
Outro aspecto interessante dos sete livros é o modo como o teor da história vai ficando gradativamente mais sério e mais sombrio. Isso não quer dizer que não haja humor nos livros posteriores, mas nota-se claramente que os primeiros volumes têm como público-alvo crianças e jovens adolescentes. Harry cresce junto com seus leitores, que vão se deparando com temas cada vez mais complexos e “adultos”. Em retrospecto, podemos dizer que toda a história foi a respeito da morte, do modo como lidamos com a perda e com a nossa própria mortalidade.
E morte é o que não falta nos livros. Se nos primeiros três só temos “baixas” por parte dos figurantes ou dos vilões, a partir do livro quatro havia sempre uma morte de um personagem importante. O jogo de adivinhar quem seria a próxima vítima da autora foi outra das grandes diversões de quem lia a obra e havia até casas de apostas que aceitavam palpites.
Nem tão maniqueísta quanto parece
Para uma história que gira em torno do combate a um bruxo que se auto-denomina “lorde das trevas”, até que Harry Potter não é tão maniqueísta assim. Em primeiro lugar porque, apesar de mostrar tendências psicopatas desde a infância, compreendemos a partir do livro seis muitas das motivações de Tom Riddle, vulgo Voldemort. Como Harry, ele havia sido um órfão maltratado quando criança e nunca foi capaz de lidar com seu medo da morte, chegando ao auge da perversidade na sua tentativa de se tornar imortal. No decorrer de seu amadurecimento, Harry percebe que tem muito em comum com seu arquiinimigo e, a partir do momento em que compreende o vilão, só pode ter pena dele.
O próprio Harry não é nenhum anjo. Ele briga com os amigos, sente inveja, raiva e dá vários chiliques (dos quais nem todos são justificáveis) durante a série. Quando é “bondoso” ou “corajoso”, não é por uma qualidade natural da sua personalidade, mas por um desejo genuíno de fazer jus aos seus pais e ao seu mentor, o ótimo Alvo Dumbledore.
E nem os mortos são santos nessa história. O pai de Harry, por exemplo, era vaidoso, arrogante e se a Hogwarts da sua época fosse uma escola trouxa (não-mágica) dos dias de hoje, seria acusado de praticar “bullying”. E o próprio Dumbledore, como nos é revelado no volume sete, já sonhou em dominar o mundo em seus tempos de juventude…
Tudo isso só contribui para dar à obra de Rowling um teor moral muito mais sofisticado do que pareceria à primeira vista. Manipulação da mídia, o racismo, a legitimidade da tortura e do assassinato são apenas alguns dos temas que são tratados nos volumes da série, sem jamais assumir uma atitude moralista fácil.
Que exemplo melhor da relação complexa entre “bem” e “mal” em Harry Potter, que o fato de a escola de magia ter uma casa específica para estudantes com tendências malignas – a Sonserina? Por outro lado, há a obrigatória exceção: Dolores Umbridge. Aquela mulher é puro mal, até o último fiapo do seu casaquinho cor-de-rosa.
Se você não gosta de ler, esses livros te ensinam
E finalmente, se nenhum dos argumentos acima te convenceu a dar uma chance aos livros da série, é porque você não gosta mesmo de ler. Vai ver nasceu na geração da internet, vai ver assistiu a muita TV quando era criança, vai ver tem preguiça de ler ou vai ver é disléxico, mesmo. Pois bem: Harry Potter pode ser a sua salvação.
Muito se discutiu sobre como a série de Rowling transformou em leitores toda uma geração que parecia não querer nem chegar perto de papel e tinta. É claro que Harry Potter é literatura pop, cultura de massa, bem de consumo cultural ou seja lá como quiser chamar. Mas muitas das crianças apresentadas ao mundo das letras por Rowling já partiram para “drogas” mais pesadas, de “O Senhor dos Anéis” às histórias do “Discworld” de Terry Pratchett.
Portanto, o que está esperando? Se você viu todos os filmes, vai conferir o capítulo final no cinema neste final de semana, e vai sair chorando porque, conforme prometido pela campanha de marketing, “tudo acabou”… Dê uma chance aos livros!