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Nasci em abril de 1984, o que significa que tinha menos de 1 ano quando os militares e a ditadura deixaram a presidência brasileira. Por isso, minha geração é frequentemente acusada de desconhecer o que era o país sob o domínio da tortura e sem o direito à liberdade – de não dar valor à democracia que temos hoje.
Seríamos uma juventude sem identidade política, apática, incapaz de responder: somos os filhos do terror, do medo e do silêncio? Ou da luta, da resistência e da vitória? E principalmente: estamos nos afastando daquele capítulo e construindo nossa própria história, ou continuamos a perpetrar a violência do passado de formas diferentes?
Em um cenário político diverso, essas são as questões confrontadas pelos gêmeos Jeanne e Simon Marwan em “Incêndios”. Criados em Montreal, os dois são obrigados a voltar à Jordânia da mãe, Nawal, quando ela morre e pede no testamento que eles entreguem duas cartas. Uma para o pai que desconhecem e outra para o irmão que não sabiam que tinham.
A jornada, adaptada pelo diretor Denis Villeneuve da peça de Wajdi Mouawad, é menos uma procura por esses dois parentes do que a descoberta de uma mãe que eles não sabiam quem era e de uma história, deles mesmos e de um país, da qual eles haviam sido poupados. Como o testamento da própria Nawal lê no início, “a infância é como uma faca na garganta. Não se pode removê-la facilmente”.
É nesse choque da inocência ignorante com uma violência sistêmica e milenar – especialmente na atuação de Mélissa Désormeaux-Poulin como Jeanne – que “Incêndios” alicerça sua narrativa. Apesar de ser um melodrama bem construído, com todos os acasos, coincidências, reviravoltas e arroubos emotivos do gênero, o roteiro não é perfeito e tem algumas cenas e diálogos nada sutis, abusando de frases feitas e exagerando a mão em algumas sequências.
No conjunto, porém, Villeneuve constrói um filme difícil, em que a narrativa áspera e seca reflete a brutalidade da história de Nawal (e da Jordânia) e a torna tão pouco palatável para o espectador quanto ela é para os gêmeos. Apesar do melodrama, o longa é marcado mais pelos longos silêncios que nada parece ser capaz de preencher e que Nawal afirma “sempre antecederem as grandes verdades”. A trilha só chega no terceiro ato como catarse para as revelações que ele traz e mesmo assim foge da grandiosidade típica do gênero.
Ao final, os gêmeos se tornam uma reinterpretação dessa figura tão comum (e nada sofisticada) do melodrama, representando os dois lados de seus pais. Jeanne, a mulher guiada pelo amor, que luta, resiste e acredita. Simon, o homem que em momentos sucumbe à violência e à intolerância, tornando-se fraco. É ao se darem conta disso que eles vão conseguir entender como “1+1 pode ser igual a 1”. Como somos todos médico e monstro, vítima e algoz, acusador e culpado. E como só superando isso, é possível interromper a corrente da violência.