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Na semana passada, um norueguês desequilibrado invadiu um acampamento de jovens militantes políticos e assassinou mais de 90 pessoas. A cobertura jornalística não demorou em tachar a tragédia de “atentado terrorista islâmico” para depois ter que se retratar (porcamente), quando descobriu que o atirador era um (dito) cristão de extrema direita.
É mais uma triste prova de como assassinos e sociopatas se apropriam de discursos religiosos para justificarem genocídios. E um importante lembrete de como essa interpretação criminosa pode acontecer com qualquer crença, não importa a natureza da fé ou o nome da entidade divina. Mais do que isso, é algo que mostra como “discurso religioso” e “prática espiritual” são valores completamente distintos – e que, infelizmente, o primeiro tem prevalecido sobre o segundo, sendo mais afeito a distorções preconceituosas e flexibilizações políticas.
É essa prática espiritual, tão perdida na sociedade contemporânea, que “Homens e deuses” retrata em seus contemplativos 120 minutos. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2010, o longa narra a história real de um grupo de monges cristãos na Argélia dos anos 90, confrontados com a violência do terrorismo e da guerra entre as duas facções em disputa pelo poder local. O conflito retratado pelo filme do diretor Xavier Beauvois, porém, é entre a fé e a espiritualidade dos freis, que os inspira a ficar ali e defender a comunidade que ajudaram a criar; e sua carne humana, instigada a fugir pelo instinto de sobrevivência.
Na belíssima direção de fotografia de Caroline Champetier, a rigidez dos planos fixos e de movimentos mínimos reflete o rigor da vida espiritual seguida pelos protagonistas. “Homens e deuses” acompanha o dia a dia de uma existência devotada à purificação do corpo e ao desenvolvimento da alma, por meio da oração, do trabalho e da fraternidade. O ritmo do longa é quase o de um documentário antropológico, interrompido por alguns poucos eventos encenados de forma sóbria e sem grandes arroubos dramáticos. O foco está nos monges, mais especificamente em como cada um lida de forma particular com o conflito espiritual dentro de si.
Dono de um hermetismo naturalista que ganha força nas boas performances do elenco, o longa de Beauvois é quase sublime no seu retrato da fé, só pecando exatamente em ignorar todo o contexto restante. A (grande) responsabilidade francesa pelos conflitos que assombram o monastério é brevemente citada em uma única cena, mas jamais explorada. Essa decisão (bem política) de ser um filme quase apolítico faz de “Homens e deuses” uma bela experiência espiritual, mas um relato histórico um tanto deficiente e incompleto para quem deseja entender o que realmente se passou ali.