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Dizer que Ricardo Darín é um dos maiores atores do cinema atual se tornou um chavão quase vulgarizado. Mas ele criou um nicho de performances do “homem comum com uma complexidade extraordinária” em que está tão próximo da perfeição, que é quase tentador saber se o argentino conseguiria salvar um longa realmente ruim. Com seus policiais, advogados e burocratas de classe média que se transformam em heróis de ocasião, Darín é o Denzel Washington que faz filmes bons.
Em “Abutres”, ele incorpora um anti-herói, na verdade. Sosa é um espécime do título: um advogado que caça acidentes de carro na província de Buenos Aires para explorar as vítimas em causas de indenização. Em crise com sua prática, ele busca uma redenção quando conhece Luján (Gusman), uma médica-residente com seus próprios demônios que, mesmo repelida pelo trabalho de Sosa, cria uma relação de atração e dependência com ele.
“Abutres” é um filme sombrio, angustiante, com uma dupla de protagonistas atormentados que se apoiam um no outro para lutar contra seus vícios. Ao mesmo tempo em que o relacionamento é o único porto seguro onde Sosa e Luján podem se ancorar, ele acaba se tornando co-dependente e pouco saudável – espelhando a velha afirmação de que só é possível livrar-se de um vício substituindo-o por outro.
Não por acaso, o diretor Pablo Trapero filma os dois quase sempre à noite, no escuro, como dois animais acuados desesperadamente em busca da luz do dia, sem jamais alcançá-la. Sua câmera segue Darín e Gusman de perto, muitas vezes de costas, reforçando essa ideia de perseguição: tanto desse encosto que insiste em acompanhá-los onde quer que vão, quanto deles atrás da saída do submundo em que se encontram.
Um thriller policial que envolve sem cativar muito, bem menos emocional que o maternal “Leonera”, “Abutres” é como um “Vivendo no limite” de Scorsese se fosse dirigido por Beto Brant. Ou o que resultaria se Alejandro González Iñárritu tivesse criado “Grey’s anatomy”.
Trapero dirige o melodrama do roteiro, seus acasos e a(in)cidentes, com um tom mais realista e sóbrio que no longa anterior. Para isso, ele se apoia, claro, na atuação contida e intensa de Darín. O rosto em silêncio do ator diz mais que 15 páginas da performance um tanto histriônica de Martina Gusman – protagonista de “Leonera” e que também é produtora executiva de “Abutres”. Justapostos, os dois se equilibram, mas é nele que se estabelece o verdadeiro conflito do filme: entre a esperança de fugir dos seus fantasmas e a consciência da impossibilidade disso, a certeza de que a única coisa no final da estrada é a tragédia, o acidente.