Blue Is the Warmest Colour (2013) | |
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Direção: Abdellatif Kechiche Elenco: Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Salim Kechiouche, Aurélien Recoing |
Há uma sequência central em “Azul é a cor mais quente”: a festa em que a adolescente Adèle (Exarchopoulos) recebe e cozinha para os amigos da namorada, a jovem estudante de Belas Artes Emma (Seydoux). Por dois motivos:
1. Nela, o dono de uma galeria de arte discute o “místico orgasmo feminino”, um mistério profundo, poético e existencial, muito além da compreensão masculina. O tópico já foi excelentemente dissecado por Manohla Dargis no NY Times, como mais um exemplo de um homem reforçando a ideia do prazer feminino como um mito, algo incompreensível e inatingível, ao invés de assumir sua incapacidade de empatizar com algo simplesmente diferente.
Nesse sentido, a cena é a denúncia da percepção masculina feita por uma mulher, a autora da HQ original Julie Maroh, adaptada pelo olhar masculino do diretor Abdellatif Kechiche. O que vem a ser uma síntese perfeita de “Azul é a cor mais quente”.
2. Na mesma sequência, o dono da galeria elogia Adèle pela sua performance como musa e modelo das pinturas de Emma. É um cumprimento que pode passar despercebido, mas que reconhece, quase revolucionariamente, a coautoria de criatura e criador na concepção de uma obra de arte. O que vem a ser outra chave para compreender o longa de Kechiche.
Existe todo um filme acontecendo ao redor da protagonista Adèle. A história de um primeiro amor, que envolve descoberta sexual, dor e amadurecimento involuntário – encenada e filmada com um naturalismo quase documental, em longas cenas, com diálogos quase improvisados. Não há nada de essencialmente novo nisso, a não ser a constatação de que uma trama bastante familiar no mundo gay – uma conexão físicoespiritual que não é acompanhada por uma sincronia de mentes – não resulta num longa lésbico, mas sim em uma história de amor universal.
E existe o filme que acontece no rosto da estreante Adèle Exarchopoulos. Porque a câmera de Kechiche pode passear pelas locações, mas é à expressão de Adèle que ela sempre retorna, em um sem número de closes que, ao contrário das três horas do longa, nunca cansam. Não é o belo sorriso, nem o choro espontâneo. É um mundo que acontece dentro da atriz, à medida que sua personagem vai passando pela dolorida experiência de crescer, e que é infinitamente mais interessante que a história que se desenrola em seu entorno.
O rosto de Exarchopoulos carrega a inocência, a dor, a malícia, a dúvida, a paixão e a solidão da protagonista – muitas vezes ao mesmo tempo. Acima de tudo, porém, ele dá vida à volúpia e à fome de Adèle por esse azul idílico e quase utópico da primeira paixão, especialmente nas várias cenas em que ela come. A garota não consegue se conectar com os amigos de Emma porque eles estão muito ocupados em analisar arte, enquanto ela está mais interessada em sentir o êxtase da arte devorando a vida ao seu redor. A protagonista não quer e não consegue compreender o que sente. Ela quer sentir até doer.
Adolescente, Adèle fala coisas muitas vezes banais, e mente, mas é em seu rosto que ela expressa todo o mundo de verdades e emoções que “Azul é a cor mais quente” quer discutir. E é nele que Kechiche escreve seu filme. No embate entre o feminismo de Maroh e o olhar masculino do diretor, quem vence é a beleza, a riqueza e a complexidade femininas estampadas nada misteriosamente na face de Adèle Exarchopoulos.
2 respostas para “Azul é a cor mais quente”
Daniel, um dos melhores texto que li sobre o filme. “Existe o filme que acontece no rosto da estreante Adèle Exarchopoulos”. Toda a análise por trás dessa frase define bem as melhores qualidades de La Vie d’Adèle. Parabéns pelo trabalho!
[…] que o arco dramático de Franck se emaranha numa rede de mentiras e suspeitas. E ao contrário de Kechiche, Guiraudie não trai seu naturalismo com cenas de sexo cinematográfico: as transas aqui são […]