Indomável Sonhadora

Animalizando (e comemorando por ser a mais jovem indicada ao Oscar)

Nossa avaliação
Beasts of the Southern Wild (2012)
Beasts of the Southern Wild poster Direção: Benh Zeitlin
Elenco: Quvenzhané Wallis, Dwight Henry, Levy Easterly, Lowell Landes


“Indomável Sonhadora” trata de animais. São feras em extinção, bichos sem nenhuma perspectiva além de (sobre)viver mais um dia. Mas não se engane. As “bestas” que aparecem no título original não andam de quatro, apesar de muitas vezes catarem comida no chão. São homens, mulheres e crianças. Seres humanos. Como eu ou você. Ou pelo menos deveriam ser.

Mas há algo que os coloca para além da marginalização. Eles não estão nas cidades, incomodando o olhar dos outros com suas roupas rasgadas e pele suja. Estão isolados, em uma área pantanosa condenada a ser inundada conhecida como a “Banheira” (a referência é uma ilha da Louisiana pós-Katrina). São ignorados, não existem, esquecidos. Vivem como homens das cavernas em pleno século XXI, algo muito bem mostrado na cenografia dos barracos e na iluminação de interiores. A alegoria pré-histórica resiste durante todo o filme, seja nas feras representando o medo pela imaginação de uma criança ou na triste constatação que apenas os “cientistas do futuro”, os arqueólogos que estão ainda por vir, poderão contar a história daquele povo. Pois ninguém vai notá-los no presente. Ninguém vai sequer olhar para eles.

O diretor estreante Ben Zeitlin imprime uma linguagem documental que carrega de realismo cada frame, ao mesmo tempo em que usa a câmera baixa e sempre em movimento para nos mostrar tudo a partir do olhar de Hushpuppy. Vivida pela espetacular Quvenzhané Wallis, a menina é um ponto de inocência e fantasia em meio à dura realidade. Mas não por muito tempo: para sobreviver na Banheira não se pode ser infantil, e “Indomável Sonhadora” vai nos levar para uma trajetória de amadurecimento forçado. Um amadurecimento que não está ligado à experiência de vida ou ao acúmulo intelectual, mas à animalização do ser.

A água aqui não purifica, mas serve como batismo para a criança aprender a ser mais forte. Pois não há noções de um futuro próximo, o pai está doente (o ótimo Dwight Henry, até então um padeiro local sem pretensões artísticas), a mãe a abandonou e Hushpuppy precisa aprender a se virar em um ambiente tão inóspito. É preciso ter o pragmatismo de comer os próprios animais de estimação. De lutar pela vida a qualquer custo.

Animalizando (e comemorando por ser a mais jovem indicada ao Oscar)

É um filme sobre o embate entre forças da natureza que se chocam o tempo inteiro: a tempestade, a pobreza, a doença. O incontrolável que não permite a sobrevivência a não ser pelo instinto puro, animalesco, feroz. Uma agressividade latente de um povo esquecido que se torna mais chocante a partir da tese defendida pelo filme que tudo está interligado. Partindo de uma noção inicialmente ecológica para uma abordagem sociológica de que cada parte do todo importa e somos todos partes de um mesmo sistema, “Indomável Sonhadora” nos põe a questão: se tudo está conectado, como podemos ser capazes de ignorar alguns? Como podemos nos considerar habitantes de um mesmo planeta, de um mesmo povo, se os corações parecem pulsar cada um por si?

São questões como estas que se apresentam em um filme cru, doloroso, mas que celebra a capacidade do ser humano em sonhar, imaginar, criar, e acreditar sempre no melhor. Pois mesmo esquecidos, abandonados por deus ou pela sociedade (o dilúvio “bíblico” para qual fecham os olhos a “gente de bem”), Hushpuppy e os moradores da Banheira nos fazem sentir dor e alegria ao mesmo tempo. E nos faz perguntar: quem são os verdadeiros animais? Eles que vivem dessa maneira, ou nós que indiferentes os permitimos assim?

Até chegar à resposta você terá passado por um turbilhão de emoções e estará, ao final de “Indomável Sonhadora”, com os olhos cheios de lágrimas. Ou com um belo sorriso no rosto. Uma dualidade que só mesmo a grande arte pode proporcionar.


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