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Nunca entendi direito o que se passa na cabeça de um transexual até ler uma matéria da Revista Piauí que aborda o tema. Trocando em miúdos (sem trocadilhos), a reportagem fala da sensação de aprisionamento. Olhar-se no espelho e rejeitar aquilo que se vê. É algo tão visceral que, para que a cirurgia seja feita em um hospital público, são necessários meses de acompanhamento psicológico até a confirmação de que se trata realmente de um paciente encarcerado em algo que rejeita. O novo filme do Almodóvar leva um pouco dessa sensação para as telas com seu primeiro (e bizarro) suspense.
O Dr. Robert Ledgard (Banderas) é um brilhante cirurgião plástico (inspirado levemente no renomado Ivo Pitanguy) que transforma a causa da morte da esposa em sua mais importante obra. Desfigurada por um acidente de carro e com a pele quase inteiramente consumida pelas chamas, sua mulher dá cabo à vida ao ver seu reflexo no espelho (a sua imagem é algo que ela rejeita). O médico passa, então, a desenvolver uma pele sintética artificial, resistente ao fogo e à dor, à qual dá o mesmo nome de sua finada companheira. O trabalho, revolucionário e franksteiniano, esbarra nas opiniões éticas da comunidade médica e, portanto, precisa evoluir longe de tudo e todos, em um laboratório na casa do cirurgião, onde conhecemos Vera.
Cativa em um amplo quarto vigiado por câmeras, a bela Vera (Elena Ayala) é a única paciente do Dr. Ledgard. Sua história é revelada tal como o seu estranho hobby, costurada trapo a trapo até compor algo disforme. Inconformada com sua reclusão, Vera oscila seu comportamento entre tentativas de fuga e automutilação – o que exige de Robert um trabalho constante de remendos e reparos à pele da paciente. Em paralelo, conhecemos um outro retalho do passado do médico: sua filha, Norma (Bianca Suarez), com problemas mentais acentuados pelo suicídio da mãe, sofre um abuso sexual em uma festa e Robert busca vingança contra o autor do crime, Vicente (Jan Cornet).
Ao mesmo tempo em que vemos essas narrativas serem costuradas – lembrando que a pele é um tecido -, fica claro como os vários personagens estão, de alguma maneira, aprisionados. Não só vemos Vera encarcerada como uma cobaia em uma gaiola, mas também a filha do cirurgião, presa aos traumas e distúrbios mentais, e até mesmo o próprio Dr. que, escravo de suas obsessões, não consegue se libertar da ausência da esposa.
A Pele Que Habito é uma porrada um pouco mais dura do que os fãs do diretor espanhol estão acostumados, mas é essa carga que o transforma em um filme de suspense tão genial. Se há algo dispensável na história, é a narrativa da mãe Marília (Marisa Paredes) e do irmão brasileiro Zeca (Roberto Álamo), que está ali mais para que o espectador se lembre de que está assistindo a uma obra de Almodóvar. Mas também não é nada que enfraqueça a colcha de retalhos do filme.
3 respostas para “A Pele Que Habito”
Belo texto. Me fez ficar com muita vontade de ver o filme (não tava com tanta expectativa, na verdade). Acho que estreou aqui neste fds. Devo ver no próximo.
Valeu, Daniel! A crítica tem falado mal do filme, considerando-se a filmografia do Almodóvar. Eu curti e achei que ele foi feliz em experimentar o gênero, mas entendo que quem sempre espera a mesma coisa do diretor pode se sentir incomodado.
[…] um realizador como Pedro Almodóvar, que escreve e dirige seus filmes, o cinema é uma máquina para congelar sentimentos e […]